Críticas

Procedimento 2 Para Lugar Nenhum | Vera Sala

Num estado alterado de percepção, Vera Sala nos confronta com um corpo à beira do colapso, testemunha de desaparecimentos, e resistindo a se estilhaçar, em seu Procedimento 2 Para Lugar Nenhum, criticado para a Plataforma Digital Dança Para Todos.

Entre resistir e se estilhaçar, Vera Sala nos apresenta seu corpo impermanente – escrito para a Plataforma Digital Dança Para Todos

 

No Anexo da Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo, Vera Sala coloca em cena o seu Procedimento 2 Para Lugar Nenhum. Num espaço percebido como algo entre um porão e uma oficina — lugar de construção ou de abandono? — uma lâmpada no chão, piscando, mostrando que ainda tem em si alguma vida, mas quase queimando; do outro lado da sala, uma placa de vidro resiste ereta — seria parte de um novo projeto, ou teria sido esquecida nesse lugar? —, atrás dela, cacos de vidro espalhados pelo chão, e próximas à platéia, diversas poças de água refletindo a penumbra. No centro desse espaço que parece retratar memória, que não é exatamente habitado, mas onde correm resíduos de intensas presenças, Vera Sala nos mostra um corpo em um estado alterado de percepção, algo entre estar colapsando e resistindo ao colapso.

Oposta à força de resistência, temos a fragilidade do corpo da intérprete, que em posturas tortuosas, com os pés virados pra dentro, os joelhos se dobrando e se batendo, estende as mãos tentando agarrar algo intangível, num fluxo respiratório espasmódico, cuja presença é delineada por sua própria escassez. Trata-se de um outro estado de atenção, voltado para um outro tempo, que se encontra no lado de dentro desse corpo resistente e treinado, mas que vai se tornando escombros em nossa frente.

Finalmente, o corpo se curva para o chão, em posições e torções ainda mais grotescas, a cabeça se mexe, se olhando, quase como numa conversa — consigo mesma ou com algo que não está mais lá? O tempo perde o seu sentido linear, se dissolvendo nos músculos do corpo à nossa frente. Ela se lança para trás, achamos que está fraquejando, mas não, continua resistindo como sempre. Num espasmo de força, se endireita em pé, e se percebe ereta só para recomeçar a fraquejar e fracassar sobre si mesma.

Assim como esse corpo, a iluminação tem espasmos, pisca, cai em resistência, o tempo todo esperamos que se apague, e ela também resiste. A sonoridade se mantém estável, quase inabalável. É uma aura estática, ode ao resíduo, ao ruído do que talvez não se devesse mais se fazer presente, mas que ainda está lá. Estamos no subsolo, e sobre nossas cabeças, no outro piso, os espaços sociais do CCSP transbordam uma vitalidade distante, aumentam o sentimento de isolamento e de insignificância pessoal: há um corpo ruindo e ninguém se importa, nada para, a vida não se abala.

A luz vai se intensificando, nos sentimos próximos de um final, concentrados depois desse longo período de observação em um tempo e espaço que se constróem além do habitual da vida, esperando para saber o que acontece com esse corpo, como ele termina, se ele tomba ou se resiste. Nossa atenção é violentamente cortada. Um martelo estoura a placa de vidro, que se estilhaça em pedaços por todo o chão, chegando aos nossos pés. O público se assusta, a bailarina não se abala. Seu estado de atenção parece ser outro. Acorrem a esse espaço inusitado de apresentação pessoas que não sabiam o que se passava. Ao fundo, algum desavisado pergunta “Aconteceu alguma coisa aí?” — e não sabemos se a resposta seria sobre o vidro ou sobre o corpo em cena.

O resto do mundo parece mais silencioso, ou talvez fosse o efeito do estouro do vidro em nossos ouvidos. Lentamente a luz da plateia se acende. O procedimento está “terminado”, porque é a nossa hora de sair dele. Mas ele não está concluído. De fato, ele não chega a lugar nenhum. E a bailarina continua ali. Continuará até todos sairmos e a perdermos de vista. E se voltarmos no dia seguinte, teremos a impressão de que ela não saiu do seu lugar, e que só a placa de vidro foi trocada. Nessa oficina do corpo, o corpo continua — provisório, impermanente, “testemunha de desaparecimentos”.

 

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