Críticas

Pra pulsar junto

Criada para a comemoração dos 40 anos do Centro Cultural São Paulo, ‘Fôlego’, de Rafaela Sahyoun para o Balé da Cidade, coloca os bailarinos e o público em um exercício de estar, respirar, e pulsar junto.

De olhos fechados, com um toque leve no corpo do outro, criando um grupo, os bailarinos do Balé da Cidade começam a pulsar juntos. O pulso interior, que comanda a respiração de cada um, gradualmente se torna o mesmo, num exercício de percepção do outro que não é de escuta, nem é de olhar: é cardíaco. Em Fôlego, criação de Rafaela Sahyoun, os bailarinos precisam redescobrir as formas de estar juntos, de existir juntos. E com eles, o público passa a pulsar junto.

Sobre um piso reflexivo, e vestidos em figurinos que misturam o corte do social com o despojamento do completamente à vontade, cada bailarino numa cor sólida e marcante, Fôlego tenta equilibrar o espaço do ser indivíduo com o do existir em conjunto. Eles são marcadamente distintos, e buscam em cena a possibilidade de dançar juntos.

O trabalho de Sahyoun é pautado por uma estratégia de pulso, unidade comum e compartilhável, que passa a colocar os corpos em relação. O que há de mais inteligente nesse exercício — e desafiador — é a proposta de que o pulso não apaga as diferenças, ele não iguala os corpos, ele não os torna indiferentes, mas ele os coloca em conjunto, unidos. A reflexão por trás pode ser expandida fundamentalmente pros nossos tempos, que enfrentam social e politicamente justamente esse paradoxo: como estar juntos, num mesmo pulso, sem apagar ou desvalorizar as diferenças.

Em matéria de dança, o desafio é mais pra baixo, pros joelhos que passarão a obra toda flexionados, e sustentando o corpo que praticamente nunca para de se mexer, em extrema energia, mesmo quando contida. O peso dessa fisicalidade parece que consome e ameaça explodir, até pelos olhos dos bailarinos, que visivelmente se emocionam com o trabalho.

 

Visto de longe, visto em vídeo, por exemplo, Fôlego talvez passa a impressão de ser algo formal, um trabalho de estruturas. Mas compartilhado no corpo, ele pulsa sangue, fôlego, suor. O que foi muito bem feito nessa produção do Balé da Cidade, que ocupou o Centro Cultural São Paulo na comemoração de seus 40 anos, foi o casamento das equipes envolvidas. A dança funciona, os figurinos têm interesse, a música é potente para a proposta, e a iluminação de Aline Santini é, como costuma ser, brilhante.

Apresentada na Sala Adoniram Barbosa, em formato de arena, com a possibilidade de ser vista de cima, e com um piso reflexivo, a luz para Fôlego seria invariavelmente um desafio. Mas ela é excelente de qualquer lugar onde se assista. Vista do nível do palco, ela trabalha uma progressão de momentos valorizando e matizando a coreografia sem tentar roubar a cena. Vista de cima, ela reflete no piso e volta pra plateia, como um componente a mais pra te colocar dentro da obra. Teremos novos desafios quando essa coreografia for pra um palco tradicional, mas esses desafios serão bem-vindos, porque essa obra precisa ser vista mais vezes.

A inegável potência demandada pela coreografia — compartilhada pelo elenco pequeno, mas que entrega toda a proposta numa execução digna de admiração — correria o risco da brutalidade. Ela é pesada na execução, e cheia de elementos que a preenchem de força. Mas aquilo que faz Fôlego funcionar, acima de tudo, é a delicadeza do trato. É o que se coloca desde o momento inicial quando os bailarinos se tocam, e é carregado pela presença do toque ao longo de toda a obra.

Esse toque varia em sentidos e intensidades, se desdobra em possibilidades, mas, o tempo todo, nos diz “vamos juntos”. Ele não é invasivo, violento, forçado. Ele é acolhedor, companheiro, cúmplice, incentivador. E por isso entramos na obra com o sorriso de quem se sente parte. Movemos junto, somos iluminados junto, respiramos junto. Não é uma questão de tirar o fôlego, mas de dar fôlego, alento, ânimo, coragem, força, pulso. E pulsamos, junto.

Rafaela Sahyoun, concepção e coreografia

Inês Galrão, assistência coreográfica e colaboração

The Field, música

Joaquim Tomé, produção musical

Karina Mondini – Tela Studio SP, figurino

Aline Santini, desenho de luz

Carolina Franco e Roberta Botta, ensaiadoras

Intérpretes criadores: Ariany Dâmaso, Ana Beatriz Nunes, Fabiana Ikehara Grécia Catarina, Jessica Fadul, Victoria Oggiam, Leonardo Silveira, Márcio Filho, Victor Hugo Vila Nova