Críticas

As regras do jogo

Uma obra pra fazer pensar, ‘Sixty-Eight em Axys-Atlas’ tem um complexo conjunto de regras que fazem o evento de dança acontecer. Sem explicar essas regras pra plateia, o público escorrega entre a mistificação e a confusão.

Alejandro Ahmed criou para o Balé da Cidade um jogo complexo. Sixty-Eight em Axys-Atlas recupera uma inspiração que vem da trilha sonora, executada ao vivo pela Orquestra Sinfônica Municipal, a partir da complexa partitura Sixty-Eight de John Cage. Identificada pelo número de músicos que a executam, a partitura propõe 15 notas, que serão tocadas pelos músicos dentro de períodos de tempo: o compositor não determina o momento exato em que a nota deve ser tocada, mas dá um período de tempo dentro do qual o intérprete faz soar a nota, a partir de suas próprias decisões.

Esse experimentalismo combina com Ahmed, que cria, também, uma proposta de diluição do papel do coreógrafo, tal como Cage dilui o papel do compositor. Para essa diluição, ele elabora uma estrutura extremamente complexa de trabalho, que, tal qual a partitura de Cage, terá resultados sutilmente distintos cada vez que dançada.

No Theatro Municipal, a plateia é colocada em contato com esse jogo, detalhado e cheio de minúcia, mas a recepção de seu resultado é mista: os comentários de corredor vão aos extremos — ouvi do “não devia ter saído de casa” ao “genial”. Pudera: o Balé da Cidade não deu à plateia o livro de regras desse jogo.

Sem saber as regras, sem entender as estruturas, não existe entendimento do jogo em cena. Sem conhecer a proposta, não é possível nem saber se a partida que assistimos em cena é uma boa partida desse jogo. Como resultado, arriscamos escapar do experimento (programa, ciência, pensamento), e adentrar no culto, no quase religioso. 

Você precisa ser consumido e tocado pelo efeito de Sixty-Eight pra obra funcionar pra você. E, com a plateia cheia durante toda a temporada, e a recepção que inclui grandes arroubos, parece que tem sim gente sendo tocada por essa obra. É ai que se abre o espaço para os exageros de manifestação da plateia, e sim, tem gente quase falando em línguas e se atirando no chão. Outros mais céticos aparecem com as sobrancelhas só um pouco mais levantadas.

Desconfio notavelmente de alguns dos urros que celebram a obra, que parece que reafirmam um papel do “publico inteligente que entende a arte contemporânea” — aquele que faz questão de rir alto pra mostrar que entendeu a piada. Pra alguns, eu ainda precisaria perguntar “que jogo é esse que você achou lindo?”.

A obra é extremamente detalhista. Seus trinta minutos são preenchidos de ações específicas, que acontecem em intervalos de tempo específico, a partir de determinações instantâneas sobre que bailarinos dançam a cada momento, guiadas por um sistema de luz inteligente e programado para executar uma sequência aleatória que os bailarinos identificam, e que corresponde às plataformas em que eles se colocam, também aleatoriamente. Dado o sinal de luz, os bailarinos nas plataformas correspondentes entram em cena para executar as ações previstas. Depois, voltarão para outras plataformas, também não pre-determinadas, no aguardo de um sinal que os ative.

Conhecendo a estrutura, é fascinante acompanhar o jogo de atenção, e o tamanho da intelectualidade ativa demandada pra se dançar Sixty-Eight. Mas para a plateia, independente de quanto se grite ao final, parece que eles só estão improvisando  e balançando a cabeça à toa.

É um problema. A obra de arte vide-bula tem uma lógica e um interesse históricos. Ela depende do conhecimento de um conjunto de informações para se poder apreciar o conceito e a proposta que são realizados. É complicado. E é questionável, mas todos os movimentos artísticos são. Porém, é um programa específico. Além do esforço mental intenso proposto aos artistas, demanda um esforço mental intenso para a plateia.

O problema aqui, é que deixaram de lado a bula. O programa ajuda pouco, e sua estrutura ainda menos: é preciso escanear um QR code no teatro pra encontrar o programa, onde encontramos também um link pra um podcast em que o coreógrafo explica um pouco mais da proposta. Sim, o Theatro Municipal continua só com programas digitais para o Balé da Cidade, diferente do que fazem para outros corpos estáveis. Para além disso, faltou organizar o processo. Como a cena não constrói explicação para o público, a familiaridade com a estrutura parece que seria fundamental de antemão, não algo pra se descobrir depois de três links e enquanto você tenta chegar no seu lugar no TMSP.

A obra em si não perde com isso. Quem perde é o público, que não tem mais a chance de entender de verdade a proposta. Como resultado, que eles façam o aleatório ou o preciso, daria na mesma. Os meses de construção intelectual ali investidos, escorrem pelo palco num espaço em que a dança parece que tanto faz, e a estrutura visual parece que é só uma provocação para a retina. 

Não são. Esse é um exercício de experimentalismo importante e que vai trazer bons efeitos pro elenco do Balé da Cidade. Mas, pro público do Balé da Cidade, entre o “não devia ter saído de casa”, e a mistificação do culto, ficou faltando a construção do complexo campo de entendimento comum. O que percebemos tem um efeito parecido com as máscaras usadas pelos bailarinos em cena: são incríveis quando podemos examinar minuciosamente, mas se tornam praticamente um borrão no palco do Municipal. Um jogo só é completamente aproveitado pelo público se é possível entender seu funcionamento.

Sixty-Eight em Axis-Atlas

Criação, Direção e Coreografia (em colaboração com o elenco): Alejandro Ahmed

Assistência para Design de Movimento, Criação e Ensaio: Aline Blasius

Figurino e Objetos: Karin Serafin

Assistência de Figurino e Objetos: Juliana Laurindo

Cenário: Alejandro Ahmed

Desenho de Luz: Mirella Brandi

Metrônomo de Luz Tempo-silêncio: Diego de Los Campos

Ensaiadoras: Roberta Botta e Carolina Franco

Elenco: Ana Beatriz Nunes, Antônio Carvalho Jr., Ariany Dâmaso, Bruno Rodrigues, Carolina Martinelli, Fabiana Ikehara, Fernanda Bueno, Isabela Maylart, Jessica Fadul, Leonardo Muniz, Luiz Crepaldi, Manuel Gomes, Marcel Anselmé, Márcio Filho, Marina Giunti, Marisa Bucoff, Victoria Oggiam e Yasser Díaz

Fotos: Stig de Lavor e Rafael Salvador