Críticas

Titã | Balé da Cidade de São Paulo

Primeira obra da temporada 2016 do Balé da Cidade a ocupar sozinha o programa da noite toda, Titã nos encontra como uma reflexão artística que se veste de arte-total, mas que demonstra uma principal devoção à música. Esse difícil lugar para o BCSP, com seu grande elenco e (ainda maior) potencial em dança é discutido na crítica do Da Quarta Parede.

A 1ª Sinfonia de Mahler é o ponto de partida para a criação de Titã de Stefano Poda para o Balé da Cidade de São Paulo. Renomado diretor de ópera, Poda conheceu o BCSP quando esteve no Brasil para a montagem de Thaïs, ocasião em que também colaborou com Eduardo Strausser, regente da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, que acompanha a temporada de apresentações de Titã no Theatro Municipal.

Quando discute seu processo de trabalho, Poda enfatiza uma característica engessada das atuais estruturas de produção lírica, e, junto de Strausser, pontua o trabalho em dança como uma possibilidade de liberdade, sobretudo com a independência do aspecto narrativo e verbal do libreto das óperas. A criação de Titã, então, defende esse mundo de possibilidade, de liberdade, de expressividade pessoal, que, paradoxalmente, são trazidas à cena em estruturas rígidas e rigorosas, e que, apesar de não desenvolverem enredo, desenvolvem temas profundos, como a situação do indivíduo frente à sociedade e anseios contemporâneos.

Mahler foi bastante incompreendido em seu tempo. O reconhecimento de sua obra vem, sobretudo, a partir dos anos 1960, mais de um século depois da criação dessa primeira sinfonia, e se encaixa numa investigação teórica e estética dentro do campo da pós-modernidade, da predileção por elementos contrastantes e conflitantes na composição musical e da cena, e das poéticas de acúmulo. Titã foi originalmente o título da Sinfonia, criada a partir de uma referência ao romance homônimo do alemão Jean Paul, publicado na virada do século XIX. Após poucas apresentações, Mahler fez alterações, cortes, suprimiu as referências ao romance de formação e sua história, e eliminou o título da obra, que Poda recupera, sem, no entanto, tratar do texto que a inspirou.

Despida da referência literária, a música se entrega ao diretor como uma possibilidade quase ilimitada de percepções, para a qual ele faz uma leitura até exagerada, compreendendo toda a individualidade, todo o sentimento coletivo, todo o universo, e toda a sensibilidade possível. Em suma, ao eliminar todas as referências, o diretor supõe abrir a obra à completa e irrefreada interpretação, que parece acolher qualquer propostas de encenação, e qualquer entendimento que dela venha.

A partir de uma partitura gráfica, Poda fez profundos estudos com os bailarinos do movimento da música de Mahler, e afirma que o elenco compreende todas as transições da sinfonia. Não há o que duvidar: trata-se de um elenco de alto nível e bastante especializado; intenso em sua expressividade e de notável musicalidade. A questão para Titã é como esses elementos, ao longo das breves 6 semanas de trabalho em estúdio, se transformam em um espetáculo.

Dentro de toda a potência enxergada em Mahler, o que sobe ao palco em Titã são sentimentos de claustro, de dificuldade, de esforço e de tentativa de superação, traduzidos por toda a proposta cênica e de movimento. O palco está contornado por grandes muros claros, com pequenas perfurações por onde vemos uma iluminação, e com uma única possibilidade de entrada e saída ao fundo, e o chão está inteiramente coberto por 18 toneladas de arroz. Os bailarinos do elenco completo do Balé da Cidade estão presos dentro da cena durante quase a totalidade do espetáculo,  e o arroz impede e dificulta diversas movimentações, levando ao desgaste e demandando esforço, que fazem parte de uma matriz de movimentação e trabalho cênico propostos por Poda.

Nesse espaço enclausurado, quase desesperador, os bailarinos se articulam com a luz, como se tentassem a alcançar, em movimentos de empilhamento, corridas intensas, e repetidas quedas ao chão: todos os esforços parecem ser em vão, numa analogia bastante crua da vida e da sociedade contemporâneas. A interpretação do elenco e sua entrega à concretização da proposta são admiráveis, mas a realização da obra de dança é limítrofe. O que vemos parece um estudo, interessante, mas não completamente concluído, não completamente transformado em resultado cênico. Aspecto difícil nessa obra que se apresenta como um grande encontro, mas que tem uma ficha técnica dominada por um só indivíduo: Poda assina a direção, a coreografia, a luz, a cenografia e o figurino (este último, com confecção do estilista João Pimenta).

Ainda que visualmente encontremos grandes e boas surpresas, num trabalho bem realizado e numa encenação bastante teatralizada e sensível para o público, o conjunto da obra é menor do que a soma de suas partes. A retomada do título parece trazer uma questão premente: qual é o titã que se coloca em cena? Do ponto de vista do elenco e da dança, parece ser uma questão do indivíduo que enfrenta o mundo; do ponto de vista da montagem, parece ser o aspecto visual, quase religioso de uma experiência de expiação; porém, do ponto de vista do diretor, como o mesmo insiste, o titã da obra é a música. E ai uma questão de domínio de uma linguagem sobre outra se instaura, e é revelada uma das dificuldades da criação de obras de dança por devotos da produção lírica e musical: questão velha no campo da dança, mas ainda profundamente relevante, sobretudo nas condições atuais.

Em 2016, o Balé da Cidade voltou ao palco do Municipal, depois de um ano de apresentações deixadas em outros teatros, e de uma colocação da dança novamente como algo menor, refletido em sua funcionalidade pontual para as óperas, e pelos muitos cortes de orçamentos que afetaram a companhia. Respondendo às novas (e às não tão novas) dificuldades, a companhia se reafirma, mantém sua produção, retorna ao Municipal, mas, nesse momento, nos oferece uma noite organizada por um diretor de ópera — notável nessa área, mas cujo próprio currículo parece colocar em último lugar o trabalho de coreografia —, num custo de produção de R$ 532 mil, e para uma obra  perceptivelmente focada na música.

É sintomático esse lugar de destaque, sobretudo numa produção que discute a importância da liberdade, da parceria da criação — parceria que inclusive parece se estabelecer mais entre o diretor da obra e o regente do que com a direção artística da companhia que dança — e que, seria de se esperar, fosse o foco do trabalho artístico. O que falta Titã? Talvez um coreógrafo que também seja diretor, ou um coreógrafo que consiga trabalhar bem com um diretor artístico, no lugar de um diretor de ópera que também é coreógrafo: pode parecer um caso simples de inversão de fatores, mas é algo maior que isso, e que retoma as questões, caras ao Balé da Cidade, da importância e da relevância de seu próprio lugar dentro das artes da cena de São Paulo, sobretudo no palco do Municipal.

O resultado final não é exatamente negativo: cada uma das partes de Titã é bem realizada e causa impacto; o que falta é algo de conjunto. E isso não cabe ao elenco, nem à iluminação, nem ao figurino, nem ao cenário, nem ao coreógrafo, cabe a essa figura do diretor. O problema é conseguir separar, nessa “parceria” intensamente autoral, cada uma das funções, e conseguir compreender separadamente o Poda que atua em uma função do Poda que atua em outra, do Poda que coordena o todo. É fundamental questionar qual o lugar da direção artística do Balé da Cidade de São Paulo nesse todo titânico, que nos apresenta bem essa concepção do hui-closcontemporâneo, mas que, esteticamente, assim como a coreografia, não consegue nos levar — como o título da última cena — do inferno ao paraíso.

 

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