Críticas

Pra que servem?

Evento monumental, “Corpos Velhos” reúne em cena 9 gigantes da dança de São Paulo. São inspirações, referências, mestres e professores de gerações de dança, refletindo sobre os limites que são impostos aos seus corpos, mas, sobretudo, à sua arte, por causa de suas idades, que, somadas, ultrapassam 700 anos.

Luís Arrieta

O projeto de “Corpos Velhos – Pra que servem?”, de Luis Arrieta e do Portal MUD, produzido pela Corpo Rastreado, era sujeito de importância notável desde antes de sua aprovação no Fomento à Dança. Não porque seja pioneiro em trazer à tona questões ligadas ao etarismo e a falta de perspectiva de continuidade e carreira profissional na dança para bailarinos após certas idades, mas pelo impacto que tem a convocação de um elenco de tamanho peso.

Arrieta se juntou a Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada para compor uma obra que fala sobre o presente, sobre a dança possível a seus corpos, sobre os rastros e os desejos que continuam ardentes de suas experiências. Partindo dos próprios limites de restrição física, a coreografia se elabora com uma relação direta entre o corpo sentado e o corpo ereto: esses dois desafios complementares e cotidianos que vão magnificando com a idade, e que aqui constróem um mote de movimentação para o trabalho.

Entre o sentado e o levantado, “Corpos Velhos” reativa memórias corporais da vasta experiência desses intérpretes. Traz frases e poses de seus repertórios — adaptados, transformados pelos novos limites que seus corpos encontram hoje. Atravessada por 700 anos de vida e carreira que as idades desses intérpretes somam, a dança não se dissipa — permanece entremeada nos tecidos musculares, em suas novas formas e respostas. A diversidade do envelhecer também é um trunfo na construção da obra. O plural do próprio título se reflete nos bailarinos e nos corpos em cena, que retratam momentos de envelhecimento, formas de envelhecimento, e limites de possibilidades particulares, distintos. Em comum, uma vasta experiência cênica, e um desejo de se fazer presente.

Ao discutir presença, falam também sobre aqueles que não estão nesse palco. Aqueles que não poderiam estar nesse palco de agora, porque já se foram. É um elemento importante para esse projeto, que teve financiamentos negados anteriormente, e, desde que começou a ser concebido, sofreu alterações da proposta de elenco, porque pessoas que também deveriam fazer parte dele faleceram. Quando finalmente acontece e chega à cena, “Corpos Velhos” grita o questionamento de quantos mais precisariam morrer antes que essa reflexão recebesse apoio.

Todo o trabalho é uma reformatação: ele reformula conceitos e possibilidades de movimento, lógicas de força e virtuose, noções de expectativa e de realização. E provoca. Coloca em movimento reduzido alguns dos maiores movedores da nossa história. Mantém um plano frontalizado, com a cena se desenrolando em uma fila de cadeiras onde eles estão sentados durante quase todo o espetáculo. Tem uma característica simultaneamente reconhecível e experimental. Trabalha a colagem dos movimentos, a colagem das cenas, a colagem da trilha sonora. E faz isso envolto numa iluminação que é um dos arroubos poéticos do espetáculo. 

A luz de Silviane Ticher propõe múltiplos recortes possíveis para esses espaços ocupados por gigantes. Angulada, cria faixas, caminhos que aproximam os bailarinos da plateia, e criam o espaço dos pequenos percursos que eles desenham dançando — quase sempre da cadeira à plateia, e da plateia de volta à cadeira. Nesse ciclo, vemos a delicadeza da repetição como estratégia de continuidade. E, frente a eles, não é possível não pensar na própria vida — e numa carreira na dança — como repetição e estratégia de continuidade.

A soma dos feitos históricos, vários deles memoráveis, alguns mesmo heróicos, que são inevitavelmente atrelados a esses sujeitos, já nos diria que o projeto de “Corpos Velhos” é fundamental. Mas é só essa realização estética, o espetáculo que de fato foi produzido, que reafirma a importância e a relevância artística. A genialidade do criador e dos criadores por trás do trabalho, e a relevância e centralidade de sua arte para a dança contemporânea de agora.

Essa relevância que tem sido reafirmada a cada apresentação da obra: o projeto que cumpriria poucas apresentações segundo seu financiamento, foi encontrado, abraçado e desejado por diversas plateias. Lotou e causou disputa por ingressos em sua estreia na Bienal Sesc de Dança, em sua curtíssima temporada no Sesc Consolação, e na apresentação única no Theatro Municipal de São Paulo. Ainda procurado, o que seria pontual continua se organizando entre convites e possibilidades de continuidade. E essa força revela algo de exemplar para as continuidades da dança, enquanto área artística.

A continuidade de um trabalho coloca em questão diversos de seus aspectos. Evidencia seus detalhes e suas juntas. Amortece, ainda que só um pouco, o efeito da grandiosidade dos nomes, pra permitir a observação mais atenta da obra. Ela revela, por exemplo, a potência da escolha das cadeiras, que, quando colocadas no elevador do fosso da orquestra do Municipal, adicionaram uma sensível camada de vazio, sobre os corpos que não estão lá, enquanto assistimos ao video introdutório do trabalho.

O video, no entanto, ainda que crie um preâmbulo para a expectativa do grande evento, acaba se arrastando. Ele tem basicamente três cenas/momentos: uma primeira poética, que apresenta os corpos envelhecidos e algumas reflexões visuais sobre seus limites; uma segunda técnica, que nos apresenta nominalmente o elenco; e uma terceira pedagógica, em que fragmentos de falas do diretor ao longo do processo nos explicam a proposta do espetáculo. São meios de garantir que a mensagem chegue, mas qualquer uma delas sozinha já seria uma grande introdução, e a duração final do compilado parece dividir demais a importância desse momento cênico de quando os encontramos, finalmente, no palco.

Esse encontro apresenta a fragilidade, o limite, mas também a potência, o gosto, a irreverência. Trata de mágoas, preconceitos, abandonos, mas coloca em foco a presença, a continuidade, o prazer, o gosto. Gosto pela dança, pela vida, pelo movimento. A obra não é levinha e impensada. Ela tem um questionamento. O “pra que servem?” de seu título amarra o que pode ser percebido como uma dúvida social. No palco, eles nos oferecem respostas. Pra que já serviram, pra que servem, e pra que ainda servirão — e esse futuro é uma reflexão fundamental: essa obra não é um réquiem, não é um epitáfio. Estes bailarinos estão aqui, entre nós. E não estão se despedindo. Estão trabalhando, produzindo, coreografando, ensinando, dançando. E eles têm dança dentro de si pra compartilhar com o mundo. Como nós podemos receber melhor esse compartilhamento?

 

CORPOS VELHOS – PRA QUE SERVEM?

Direção geral: Luis Arrieta

Elenco: Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Luis Arrieta, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada

Assistente de direção: Lumena Macedo

Assistente técnica: Fábio Villardi

Iluminação: Silviane Ticher

Vídeo: Vinícius Cardoso
Foto
: Arnaldo Torres, Emidio Luisi, Gil Grossi e Silvia Machado

Edição de trilha sonora: Marcos Palmeira – colagem musical com músicas de Guilherme Vaz e Mercedes Sosa

Coordenação de projeto: Portal MUD (Talita Bretas)

Produção: Corpo Rastreado (Danusa Carvalho e Gabi Gonçalves)

Apoio: Ballet Stagium, Fábio Villardi e Loty Okada