Críticas

Gaksi / Tail Language | Art Project BORA

Mais do que o interesse pontual, ‘Gaksi’ e ‘Tail Language’ da companhia sul-coreana Art Project BORA trazem reflexões sobre a comunicação artística, que são úteis tanto para os artistas quanto para os públicos da dança, e, mais ainda, em meio a um festival como o ABCDança, que nessa ocasião convida a companhia para o encerramento de sua edição 2017.

Com duas apresentações no Centro Cultural São Paulo, trazendo pela primeira vez para o Brasil as obras Gaksi, e Tail Language, o Art Project BORA, companhia da Coréia do Sul coreografada por Bora Kim encerrou a programação do ABCDança 2017, que levou apresentações e atividades diversas para 8 cidades da grande São Paulo e para a capital, ao longo de mais de um mês de programação.

Gaksi, de 2015, é um solo interpretado pela própria coreógrafa, que se propõe discutir o lugar da esposa na Coréia atual, a partir de uma referência a uma HQ intitulada A Máscara da Noiva. Representando a visualidade da máscara, Kim usa um leque aberto na frente do rosto, segurado pela boca, e, durante a maior parte do espetáculo, não podemos ver suas expressões. O que pode se ler como um apagamento da individualidade se reflete também no jogo cênico, que investe numa oposição de luz e sombra, e de recortes luminosos, delimitando o espaço vazio da cena por onde Kim se movimenta, e que também remete ao universo de criação e aos traços do Manghwa, o estilo de quadrinhos sul-coreano.

Trabalhando com micro movimentação, sobretudo das extremidades do corpo, em dinâmicas sempre muito controladas, a coreógrafa cria estados corporais de constante tensão, que não chegam a traçar a ironia ou a sátira sugeridas pelo programa, mas que constróem bem perceptivelmente uma situação de conflito interno. O gestual muitas vezes lembra pequenas tarefas domésticas, no que pode ser entendido como uma referência indicial. Porém a particularidade de se assistir a algo que parece ter uma clara mensagem, mas que vem de uma cultura tão distante, é justamente o debate entre identificar se esses gestos são derivados das ações, ou se são gestos rituais e simbólicos de algum elemento da cultura desconhecida, ou de uma técnica de dança específica.

Esse espaço para entender a obra como referência ao ritual ou simbólico também se sustenta pela estrutura de luz e sombra que aumenta uma sensação de sacrificial, sobretudo quando a luz se recorta como uma faixa vertical menor do que o próprio corpo da intérprete, que parece presa a esse espaço, ainda que dele tente fugir — uma leitura do próprio tema, a questão do casamento e do posicionamento da mulher frente a essa expectativa / obrigação.

Se há uma dificuldade em Gaksi, é a questão da tradução dos comentários tecidos pela obra. Tão enraizada na reflexão sobre uma cultura que não é a nossa, a obra nos chega com diversos indicativos e sugestões, mas a dança não é em si uma forma fácil de transposição de conteúdos. Mais que isso, para conseguirmos entender o discurso satírico da proposta da obra, precisamos entender não só aquilo que ali se apresenta, mas também as referências que são satirizadas. Não há possibilidade de alcançar a sátira sem o entendimento daquilo que é parodiado, mas o que podemos apreender é de fato uma estrutura de rigidez e de contrição, que se traduz pelo movimento.

A ideia de tradução e de entendimento também é fundamental para discutir Tail Language (de 2014), que completa o programa do Art Project BORA. Quando a cortina abre, encontramos o palco iluminado por luzes rebaixadas, com as varas a uns dois metros da cena. No palco, estão peças de roupa estruturadas, que ficam paradas em seu lugar sem que ninguém as vista. Adentram a cena os bailarinos em posições animalescas, às vezes em quatro patas, e o aspecto geral, com a estrutura da cena e a movimentação, é de que observamos um viveiro.

Entre o vestir dessas carapaças e o mostrar o que há debaixo delas — o corpo dos bailarinos, visível entre os figurinos que vão do pijama à roupa íntima — a coreografia parece sugerir uma ligação entre o humano e o animal. Não à toa, a criação partiu de cinco personagens de fábulas orientais, e ainda que não haja um trabalho percebido com a fábula enquanto narrativa, ela serve de tema, bem como seu propósito geral: nas fábulas, as personagens animais são humanizadas para ilustrar possibilidades de comportamento humano. Aqui, o processo se inverte, e os humanos são animalizados para discutir o comportamento e a comunicação. Dessa proposta vem o título, referência à investigação empreendida pela coreógrafa do uso dos rabos pelos animais para a comunicação.

Parece inevitável a associação entre o humano e o animal, e a presença das roupas sobre o palco, resistindo como carapaças, como exoesqueleto, reforça uma sensação de que a equação proposta tenta nos demonstrar que o humano é um animal vestido de uma carapaça social, que pode ser deixada de lado e re-colocada, conforme a necessidade, a conveniência ou o objetivo de cada indivíduo. A coreografia explora comportamentos de bando, em ações conjuntas, mas também carregando os traços da conformidade do indivíduo ao grupo, bem como algumas marcas de liderança e de dominância — todos esses, aspectos que podem discutir tanto o animal irracional como o humano. Se a sensação de viveiro do começo da obra colabora para distanciar a platéia daquilo que acontece no palco, logo as luzes são erguidas, e os bailarinos passam a usar o corredor da frente da primeira fileira como se fosse mais uma saída de cena, o que culmina, ao final do espetáculo, com uma completa invasão do espaço da plateia, com as roupas sendo dobradas no palco e depois colocadas em nosso meio, ocupando cadeiras.

Assim, da posição de observadores desse microcosmo, passamos à reflexão de sujeitos participantes dele. A plateia, indiretamente iluminada, é rodeada por esses novos “indivíduos” representados pelas vestes deixadas para trás. E a leitura transita entre a comunicação dos animais e a comunicação e as ações dos humanos, enquanto animais. O limite dessa brincadeira — posto que o espetáculo é quase lúdico — vem em um solo final, justamente enquanto as roupas são dobradas e colocadas na plateia — esse solo, com uma carga animalesca cada vez menor em sua movimentação. O espaço da cena, se abrindo para incluir a plateia, parece nos refletir, e as questões que carregamos são várias. Desde a observação curiosa do outro, até as possibilidades de comunicação e de identificação de nós mesmos.

A escolha das obras é relevante para encerrar um festival como o ABCDança, que marca uma passagem do formativo e do amador ao profissional — os bailarinos que dele participam possuem DRT, mas a origem dos trabalhos da mostra é claramente o meio amador. No espaço de formação e de profissionalização, muitas dessas estruturas comunicativas, dos papéis sociais, e dos comportamentos de grupo, podem ser observadas, e as reflexões que as apresentações do Art Project BORA trazem nesse contexto vão muito além da observação do alheio, do estrangeiro, do desconhecido, e pesam sobre os importantes temas da constituição dos artistas, da formação de suas obras, e de suas estratégias de comunicação com o seu público, sobre o seu público, e para o seu público.

 

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