Críticas

Abrindo caminhos

Abrindo novos caminhos a partir da reverência aos que vieram antes, Umbó, de Leilane Teles parte da inspiração como tema, pra abrir o programa da SPCD, e a Temporada de Dança 2021 do Alfa.

Inspiração é o que move Umbó, estreia de Leilane Teles para a São Paulo Companhia de Dança. Em sua primeira coreografia para a SPCD, Teles olha para as carreiras e para a arte de três indivíduos que a inspiram: ouvimos a trilha sonora de Tiganá Santana na voz de Virgínia Rodrigues, e vemos a movimentação que tem raízes no trabalho de Mathias Santiago, mentor de Teles, que foi seu diretor no Balé Jovem de Salvador.

Coberta por essa aura de reconhecimento, de proximidade e carinho, a obra toda é extremamente doce, com gosto de boas memórias. A primeira cena ajuda a construir essa cara de lembrança, com os bailarinos que se arranjam perto de um banquinho como numa fotografia antiga. E somos levados pra esse espaço de pensar sobre outras coisas e outros tempos.

As cenas de Umbó passam como um álbum de fotografias, misturando o espontâneo com aquele momento de pose, que se organiza pra ser visto com esses bons olhos. Não que a coreografia seja posada, mas ela se desenha pra ser olhada com esse recorte, que parece que a qualquer momento poderia ser clicável, pela câmera ou pela memória, registrando uma lembrança.

Extremamente plástica, a movimentação coloca o corpo pra mexer com vontade e com propósito, sem muito espaço pra dúvida ou questionamento. Se Umbó fala de abrir caminhos, ela também reflete sobe os caminhos já abertos, e esse pensamento é carregado da força de saber aquilo que já se fez, os lugares onde já se chegou.

A obra marca a SPCD como a primeira coreografia de uma mulher negra nos 13 anos da companhia. Ideia que se cobre de importância quando se discute os espaços que precisam ser ocupados, e que se reflete na ficha técnica, na escolha dos colaboradores, e até no elenco. Umbó espelha mais gente em cena, e faz isso partindo da memória daqueles que vieram antes, articulando a importância de estar aqui e agora, nessa condição, com o respeito e a reverência dos que nos abriram caminhos — “se quer ir longe, vá em grupo”, diz o provérbio.

Teles trabalha uma movimentação expansiva e focada nos membros, com usos de centro e de gravidade que ajudam a provocar o público, nem sempre acostumado com essas inspirações. É daí que vem a riqueza da diversidade. De encontrar o valor do outro, outra história, outra experiência, outras tradições, e que nos permite a aproximação, nessa obra sobretudo por esse paralelo de carinho, de reconhecimento, de homenagem e de pensamento de bando.

A maior complicação pra obra está na inconstância dos figurinos. De interessantes malhas revelando o corpo, a obra passa pra saias amplas que abrem espaço pra jogo, leveza e diversão, mas termina numa nota mais fraca, com jaquetas e calças amplas, em si apagadas, mas que apagam também o interessante trabalho coreográfico. É uma questão de excessos, de fazer bailarinos sempre sairem do palco vestidos de uma forma, e entrarem de novo com uma pequena alteração. Mesmo quando a alteração é boa, ela distrai do foco. Colabora para o efeito do álbum de fotografias sendo folheado, e ajuda a criar ambientações ou leituras distintas, mas, quando atrapalha a percepção da movimentação,  talvez não valha a pena.

Esse tipo de atenção pra edição de detalhe é uma questão de direção que pode ser trabalhada com o tempo. Essa é uma primeira obra, e ela já tem um tanto de potência e graça, especialmente em sua matéria principal, a dança, e nos mostra que essa coreógrafa tem um tanto de coisa a dizer. Ao final do trabalho, esse tanto de coisa transborda, inunda a plateia em uma luz vinda do fundo do palco, e que já não sabemos se é passado ou futuro, mas é caminho, caminho aberto, e é pra ela que os bailarinos seguem, sem medo, sem ansiedade. Nós também.

No todo, Umbó é uma escolha especialmente interessante pra abrir esse programa da SPCD na Temporada de Dança do Alfa, onde essas referências todas caem muito bem. A temporada, que nos pegou de surpresa esse ano, sendo organizada com muito mais pressa do que normalmente, parece surpreender também a companhia: Umbó teve pré-estreia em agosto, mas, dois meses depois, ainda tem desacordos em algumas contagens de tempo, que poderiam ser limados em mais ensaios.

Mas a pressa afeta essa temporada, que vem na sequência da temporada no Sérgio Cardoso, e às vésperas da temporada internacional na Alemanha, em novembro — ambas as com obras que não estão nesse programa. O que faz uma temporada de só dois dias, com obras ensaiadas só pra ela, e com os resultados dessa pontualidade pesando em qualidade de ensaio. Anthem, de Goyo Montero sofre um pouco com esse aspecto, e Respiro, de Cassi Abranches, um tanto mais: é uma obra de solistas, mas que, nessa temporada, deixou alguns de seus solistas um tanto abandonados — especialmente aqueles que não dançaram a temporada de estreia da obra, ano passado, alguns parecendo descobrir a coreografia ao mesmo tempo que a plateia.

São estruturas pra se prestar atenção, e pras quais o público pode olhar. Mas elas também não devem tomar a cena, e apagar a verdadeira surpresa e orgulho de, em um ano como esse, em uma situação como essa, vermos essas obras, dessa companhia, nessa temporada de dança. É da ordem do inesperado, tem os efeitos do apressado, mas também nos mostra o que os nossos artistas dão conta de fazer, e poder ir ao teatro pra ver isso é motivo de felicidade. A imagem de Umbó se replica: abrindo a temporada de dança do alfa, Umbó vem abrir muitos outros caminhos, entre eles, essa expectativa por um retorno da grande programação da dança de São Paulo, que já brilha como uma luz no fim do palco.

Umbó

Coreografia: Leilane Teles

Músicas: Nzambi Kakala Ye Bikamazu, Muloloki e Para a Poetisa Íntima, de Tiganá Santana, e Mama Kalunga, de Tiganá Santana na voz de Virgínia Rodrigues

Figurino: Teresa Abreu

Assistência de Figurino: Priscilla Bastos

Iluminação: Gabriele Souza

Elenco: Ammanda Rosa, Dandara Caetano, Diego de Paula, Geivison Moreira, Hiago Castro, Letícia Forattini, Nielson Souza e Thamiris Prata