Críticas

Uma só voz, feita de muitas

A SPCD encerra um ano de boas novas produções com criação de Goyo Montero.

Os indivíduos, surgindo, se encontrando, se agrupando e se enfrentando, são o tema que organiza a criação de “Anthem” de Goyo Montero para a São Paulo Companhia de Dança. A obra encerra a temporada da companhia no Teatro Sérgio Cardoso, em um ano notavelmente positivo de criações.

“Anthem” faz uma ponte entre o indivíduo e a multidão, discutindo a construção da identidade, tanto pessoal quanto do grupo, a partir dos diversos elementos que nos formam, nos organizam e nos governam. 

Trabalhada numa sequência de seis cenas, às vezes com uma dificuldade dramatúrgica de progressão, a obra retrata o indivíduo se tornar dupla, se reproduzir, e o novo indivíduo se tornar parte de um grupo, numa perspectiva um pouco sombria, ainda que não completamente negativa.

É algo como um “romance de formação”, mas esse gênero literário exige um longo desenvolvimento para contar suas imensas narrativas, aqui apressadas na continuidade das seis cenas.

Se a dramaturgia falta, a interpretação sobra. Nessa criação, Montero pega o que o elenco da SPCD tem de melhor, abrindo espaço para vermos talentos cada vez mais pronunciados, como Renata Peraso — há cinco anos na companhia e a cada ano mais surpreendente.

É dela o papel da “mãe” em “Anthem”, e é sua, portanto a maior carga dramática, que se expressa em coreografia e estados corporais muito bem dominados. Um dos maiores focos da obra, a cena do nascimento, abre ampla oportunidade para uma coreografia de medo, que faz uma ponte acidental com outra obra do programa, a excelente “Melhor Único Dia” de Henrique Rodovalho, de cuja trilha poderíamos emprestar um verso para falar da obra de Montero: “nascer não é para os fracos”…

A iluminação é uma coisa toda extra em “Anthem”. Bem feita e bem encaixada, ela é completamente na cara: não há nada de sutil em seus efeitos, nada de delicado, e isso serve ao tópico da obra — esse estar em conjunto não é nada sutil, beira e às vezes passa à violência. Os figurinos também sofrem desse sintoma, mas aqui com menos solução, em malhas pintadas para parecer o corpo, que são para se ver de longe — e só de longe.

Realmente brilhante é a trilha sonora, e o uso que ela faz da voz, que serve para anunciar com muito mais força o caráter humano, individual e de grupo dessa obra. Torna-se um reflexo daquilo que temos de parecido e de diferente, e do efeito que a soma dessas semelhanças e distinções podem fazer na composição de um bando — às vezes unido por uma causa, outras vezes desdobrado em enfrentamentos.

Mas mesmo no enfrentamento, o que ressalta é a união, ou, talvez seja melhor dizer, a comunhão. É uma questão de estamos juntos, não apenas porque decidimos e escolhemos estar juntos, não apenas pelas nossas semelhanças, mas também a partir das diferenças. Também porque no fundo não há outra escolha. De certa forma, somos todos uma só voz, feita de muitas vozes.

A voz, e, mais precisamente, a respiração, também cumprem um papel em “Supernova”, de Marco Goecke, que completa o programa da noite. Sacrificial, apocalíptica ou cosmogônica, a obra é como uma estrela que explode e talvez crie novos universos, bem explorados na cena pela coreografia e pelos bailarinos.

“Supernova” foi a primeira, e a melhor obra do coreógrafo a entrar no repertório da SPCD, em 2011, e continua funcionando muito bem. Ela dialoga, ainda que em outros termos, com a produção desse ano, tão focada no grupo, no mundo, nos caminhos e destinos da humanidade, mas trazendo uma perspectiva maior: somos só poeira cósmica. O que traz um tanto de respiro e calma para as tensões levantadas pelas obras estreadas nessa temporada.