Críticas

A poesia como expressão do corpo

São várias as partes que se articulam para uma obra de dois coreógrafos e uma ficha técnica muito extensa suba ao palco. Mas navegar esse trajeto arriscado com sucesso tem se tornado uma marca da parceria da SPCD com o Theatro São Pedro.

Assistir dança numa temporada de música de câmara tem características especialmente interessantes. Primeiramente, porque estamos em um lugar que não é — completamente — o nosso. Mas no Theatro São Pedro, a dança é muito bem recebida, dentro dessa segunda parceria de sucesso com a São Paulo Companhia de Dança, que nos apresenta “Schumann, ou Os Amores do Poeta”. Uma coleção de poemas musicados — e agora encenados e bem coreografados — nos transporta sem muita dificuldade para o meio de 1800, e cria uma ponte daquele momento com agora.

A cena do primeiro ato nos coloca numa floresta, dividida com o piano, de um lado do palco, e uma mesa do outro, onde escreve o poeta-músico-bailarino. Essa amálgama de intérpretes repartindo a mesma função cênica — ainda que não exatamente personagens — é uma das chaves certeiras da encenação. A obra toda, ao invés de trabalhar pela ilustração da proposta das músicas, organiza formas de desdobramento: não vemos de fato personagens em cena, mas possibilidades de corporificação dos sentimentos das canções.

Esses sentimentos operam na construção de memórias, sensação que é auxiliada por todo a cuidadosa proposta do espaço cênico e suas alterações, pela ótima iluminação, pela complexa direção cênica e, sobretudo, pela coreografia — aqui incluindo tanto a coreografia da integração dos diversos elementos da obra quanto aquela da dança, propriamente dita, para os seis bailarinos da SPCD desse elenco.

Da ambientação passadista e romântica desse ato é emprestada a imagem da sílfide, que passa vez ou outra pela cena, como a construção aérea e anatingível do desejo expresso pelas músicas, mas o que há de especial é que as canções encenadas se organizam para a dança como uma forte relação e sugestão, mas não como uma dependência narrativa de tradução: sem nenhuma tentativa de ilustrar aquilo que elas contam, os coreógrafos podem fazer as propostas se desenvolverem e tomarem vida por si próprias, através dos corpos em cena.

No primeiro ato, todo esse ar romântico é acentuado pelo uso de sapatilhas de ponta, e a coreografia de Milton Coatti trabalha as possibilidades de articulação do corpo treinado pelo e para o contemporâneo na construção de uma movimentação que é de balé. A mistura funciona bem, com doses acertadas de tradição e de inovação, propondo leituras do tempo-e-espaço ali construídos e que vão se esparramando por sobre a cena para chegar à plateia.

No segundo ato, uma brusca inversão. Removido o cenário, vemos o fundo do palco do próprio teatro. Removidos os figurinos românticos, vamos deixando de lado essa forma de visualização de um tempo passado, e a montagem, tal qual a grande tendência das encenações contemporâneas de óperas, trabalha para nos mostrar a atualidade e a atemporalidade de seus conteúdos.

Também se reconfigura a proposta coreográfica, agora assinada por Cassi Abranches, num contemporâneo que não tem nenhum desejo de retrabalhar algo do balé, e que se constrói por caminhos completamente diversos, e já bastante próprios. Para além das interessantes propostas em duos e trios, e os inovadores posicionamentos combinados dos corpos em cena, são os pequenos detalhes coreográficos que surpreendem, feitos em um perfeccionismo composicional que espelha a execução da trilha pelo pianista: técnica, precisa, dedilhada.

Essas são questões de estrutura da partida e origem dos movimentos no corpo, das articulações propostas entre os bailarinos na cena, das formas como eles se tocam, se seguam, se sustentam, e, especialmente, de cuidados com as extremidades e as formas como o corpo pode ser visto em seu nível mais micro, que fazem a percepção de uma obra aparentando ter muito mais tempo de trabalho do que ela de fato teve para se realizar.

Nesse lugar de colaborador-convidado, ver a dança em cena no meio dessa temporada lírica é algo que impressiona não apenas pela dedicação à busca por novas parcerias e a novas formas de produzir dança, mas sobretudo pelo casamento generoso que se encontra nessa montagem, na qual parece que todas as partes estavam realmente dispostas à colaboração, e a dança não vem à cena em momento algum para ser ilustrativa. Ela toda é uma obra em si. Informada e exaltada pelo conjunto dos demais envolvidos, mas, tal qual o canto ou o piano, poderia ser apresentada sozinha e nada ficaria devendo em expectativa, nem em realização.

São muitas as cenas de destaque, mas, ao invés de pontuá-las, vale mais deixar o alerta de atenção para a plasticidade da construção do corpo — em ambos os atos e por ambos os coreógrafos e, especialmente, pelo talentoso elenco. Sem a tentativa de narrar as canções, os coreógrafos se permitiram ser seduzidos pela trilha e trabalhar no movimento toda a sua sensação, que se refaz nos corpos da plateia através dos corpos dos bailarinos. A dança se torna tão afirmativa e tão presente que fica fácil ignorar a legenda das letras das canções (traduzidas do original alemão). Ainda assim, persiste a sensação de que não perdemos nada do espetáculo.

Tudo esta ali, no corpo que dança e nas propostas de desenho para esses corpos. Seria fácil eles serem subjugados pela música e pelo canto — potentes —, pela luz e pela cena — impactantes —, mas isso não acontece. Primeiro, porque se trata de um elenco de especial qualidade. São apenas seis bailarinos que dão conta de se desdobrarem num universo. Em segundo lugar, pelo sucesso da realização dessa proposta. Numa empreitada de tantas partes e tantos colaboradores, as chances de tudo dar errado são inúmeras, e permanecem à espreita. Mas essa segunda parceria da SPCD com o Theatro São Pedro acumula sobre o sucesso da parceria do ano anterior (“Pulcinella”), e enche a expectativa para as próximas, que esperamos, tornem-se tradição, ganhem temporadas maiores, e circulem.

Nesse tempo em que as parcerias são tônicas da resistência e da presença da dança nos palcos, aquilo que nunca pode ser deixado de lado é a importância de que a dança não se coloque em segundo pano apenas para estar em cena. Mas aqui não há esse risco. A dança é tão boa quanto a música, tão boa quanto o canto, tão boa quanto a cena. Talvez até melhor, quando olhada por esse viés que tem pela dança um gosto especial.

Mas o trunfo da montagem não é achar o que seja melhor, e sim observar o sucesso da costura de suas partes. O que essa natureza mista tem é uma grande disposição para públicos diversos, pois há algo para muitos gostos e preferências artísticas, e o potencial de apresentar a dança ao público de música, a música ao público de dança, e assim por diante, maximiza o interesse que a obra provoca, enquanto a qualidade da dança e da música e da cena que são apresentadas justificam tal investimento e trabalho.

É tempo de parcerias, mas de parcerias preenchidas de sentido e de potência. Advogando pela causa da dança, de parcerias que abram o espaço para a realização de bailarinos e coreógrafos em novos circuitos. Parcerias em que a dança não seja ilustrativa, e mostre sua força estética. Esse tipo de realização demanda um trabalho — imenso — de uma equipe — enorme — comprometida com uma obra e com suas linguagens. Quando bem feito, o resultado que encontramos é uma situação como a desse “Schumann, ou Os Amores do Poeta”, em que a poesia se faz canção, que se faz voz, que se faz cena, que se faz corpo, que se faz dança, que se faz poesia. E quem ganha é o público.