Críticas

BCSP na Cúpula

Três obras coreografadas por membros do elenco do Balé da Cidade formam um dos melhores programas recentes dessa companhia, mostrando seu valor, e a importância histórica da mostra coreográfica.

Em 1977 o Balé da Cidade de São Paulo fez sua primeira Mostra Coreográfica, uma oportunidade para os bailarinos do elenco da companhia criarem coreografias. Desde então foram 20 edições de mostras atravessando quase todas as gestões, e abrindo espaço pra artistas que se afirmariam como criadores fora (e também dentro) do BCSP. É o caso de Luis Arrieta, Ivonice Satie, Umberto da Silva, Sandro Borelli, Cláudia Palma,  Alex Soares, e muitos outros.

Agora antes do Natal, o BCSP encerrou sua programação de 2021 com mais uma mostra coreográfica. Sua realização é surpreendente. Depois de crise, cargo vago, e pandemia, a companhia ainda não está funcionando a 100% — ainda há diminuições de cargas horárias e de atividades. Surpreende também porque a nova diretora do grupo, Cassi Abranches, está por lá há só dois meses, e esse é o primeiro projeto de fato encabeçado por ela.

A companhia que ela encontra está praticamente sem repertório. Efeitos de escolhas administrativas seguidas de crises consideráveis, passamos os últimos anos defendendo o Balé da Cidade na base do “é uma grande companhia histórica e que tem um grande elenco”. Nessa mostra coreográfica, recebemos com impacto a entrega de todas as promessas. Nada precisa ser defendido. Em um programa que custa notavelmente pouco, encontramos a companhia como a esperamos, em plena demonstração de suas potências.

A mostra foi apresentada em apenas 4 sessões, que lotaram a Cúpula do Theatro Municipal. O programa tinha essa cara de evento especial. Não é comum assistirmos ao Balé na Cúpula, e também foi a primeira vez que músicos da Orquestra Sinfônica Municipal compuseram para a companhia. As três criações sonoras são sensíveis, atentas às necessidades da dança, e deliciosamente bem executadas. Com o bônus de serem regidas por uma bailarina, a ensaiadora do BCSP, Carolina Franco.

O espaço e a novidade arriscam dominar a discussão do programa, que precisa ser recuperado e repetido, ali ou em qualquer outro espaço, pelo motivo mais fundamental possível: deu certo. É um programa excelente não porque cria uma situação pitoresca e uma vivência ímpares, mas porque é um excelente programa de dança.

A estrutura de três obras nessa noite é boa, porque preencheu a programação com um pouco menos de variedade (nas últimas edições da mostra vimos umas 8 criações), e com um pouco mais de tempo para um pensamento artístico, e para a sua apreciação. O tempo de execução das ideias deixa a plateia saborear melhor os trabalhos, e entender mais quem são os artistas se apresentando ali.

Se a mostra serve pra criar oportunidades e mostrar talentos, o público também precisa de oportunidade pra reconhecer e apreciar esses talentos, e é difícil fazer isso no atacado. Aqui, o conjunto das boas propostas e das boas execuções abriu uma percepção extremamente positiva. Os dois primeiros coreógrafos da noite, Fernanda Bueno e Fábio Pinheiro, já haviam criado em edições anteriores da mostra, mas o que vimos talvez sejam suas melhores criações até agora (ou pelo menos aquelas que tiveram mais possibilidade de desenvolvimento) — certamente entre as que assisti. A terceira, do estreante Márcio Filho, também tem gosto de brilhantismo e chega cheia de promessa.

Placebo, de Fernanda Bueno, que abriu a noite, é a única das obras a se servir explicitamente da estrutura da cúpula. Sob o risco do site-specific, e do deslumbramento pela experiência do espaço em si, seu maior valor está na delicadeza com que a equipe trabalha a dinâmica do pessoal e do universal. Placebo constrói cenas a partir de histórias pessoais — Bueno trabalho junto de Yasser Diaz, com quem divide a cena, e também de Antônio Carvalho Jr. — mas oferece ao público a possibilidade de decidir aquilo que assiste, sem entregar muitas explicações — quando vemos a sombra bailarina, sozinha na janela da cúpula, vemos solidão, autonomia, ou lucidez?

O geral da reflexão parece que questiona aquilo em que precisamos acreditar. O foco aqui é pessoal, humano, e sensível. Em cena, dois indivíduos existem e coexistem, e mostram as lógicas de estar junto, estar separado, e estar separado mesmo quando junto. Mostram como a gente se apoia, se sustenta, se segura, depende do outro, conta com o outro. Mostram como a gente cai, ou quase cai, e precisa continuar erguendo e seguindo.

Pra seguir, às vezes a gente inventa histórias. Chamamos a solidão de autonomia, e outros tantos placebos. Quando eles funcionam, importa pouco que não eram remédio, e muito mais que a gente se sente melhor. Tem um tom de melancolia que persegue: a dúvida entre aquilo que é real, e aquilo que se dissiparia no ar se abríssemos a janela. Mas existe algo de concreto, algo que muda, que talvez seja memória, talvez seja presença, talvez seja esperança, talvez seja só placebo, e que nos pega todos pelos calcanhares.

Na sequência, Espelho d’Água, de Fábio Pinheiro, reúne um elenco de cinco mulheres que reafirma todos os elogios aos bailarinos do BCSP. Inspirado na lenda tupi-guarani, perseguindo a lua à exaustão, Naiá definha e se afoga, e é transformada na vitória-régia, estrela das águas. Dançando sobre um tapete redondo de grama, as cinco bailarinas fazem uma dança mística, entre o transe e a transmutação. 

Extremamente física, a coreografia invoca forças de naturezas além do humano, reforçadas por toda a criação artística da obra, não só a música original, mas também a iluminação, figurinos, e até os cabelos das bailarinas caindo na frente do rosto. É um exercício de força, precisão e talento, desses que justifica a alcunha de “um dos elencos mais fortes do país”, que tantas vezes ouvimos sobre o BCSP, há gerações — força que nem sempre os intérpretes têm a oportunidade de mostrar, a partir de escolhas artísticas e coreográficas que não lhes cabem, e que aqui transbordam a cena.

A obra cresce para o êxtase, e quando as bailarinas parecem que não aguentam mais, ela termina deixando a plateia com um suspiro assustado. É uma obra de verdadeiro impacto, e assim é recebida pelo público. Mas ela tem lá suas questões, que começam com uma obra para elenco de mulheres e sobre uma lenda feminina que é concebida, dirigida e coreografada por um homem, continuam com a discussão de um tema indígena que, se é fundamental para o nosso momento, também carece de representatividade real dentro do BCSP, e termina com as perucas que algumas das bailarinas usam. Perucas não se movimentam como cabelo, e arriscam o aspecto de fantasia. Em nada afetam a performance corporal incrível das bailarinas em cena, mas vivemos os tempos de questionar não só as boas intenções, mas o quanto essas intenções podem reproduzir padrões problemáticos da sociedade.

Um dos trunfos da arte sempre foi a possibilidade de falar do outro, e não só de si. Mas existe um tanto de verdade que só transmitimos quando tratamos de nós mesmos. É ai que se constrói o autoral. A característica do indivíduo que transpassa não exatamente a sua assinatura, mas a sua caligrafia. É esse o gosto de Aldeias Mortas, de Márcio Filho, que encerra esse programa. Essa é sua primeira coreografia (e por isso tem um tanto de risco nas percepções), mas essa é uma obra que se assiste intrigado, querendo conhecer melhor a cabeça de onde brotam essas ideias de movimento.

Costumamos buscar na biografia dos coreógrafos as respostas pra esse tipo de pergunta. Quando Márcio Filho conta que começou seus estudos em dança na Escola de Frevo de Recife a gente começa a tentar juntar uns pontos. É um detalhe do que se vê numa série de movimentos e passos que parece que são feitos pra ser “quase” — o bailarino dá um passo, vai dar outro, mas segura e contém. O trabalho de contenção, junto das ocasiões onde se explode e escapa dessa contenção fazem o interesse dessa obra.

Ela mistura o bando, o estar junto, o fazer parte do grupo, com o sujeito, com o estar sozinho, com o buscar e o não ter esse bando. Ela tem uma certa tristeza, talvez porque fica visível o tom de quase descrença com a sociedade. Com a desunião da aldeia global, e o tanto que o mundo inventou e criou, mas sem conseguir se unir. Aldeias Mortas fala dessa dificuldade. Procura onde é que poderíamos ser bando de novo. Como é que poderíamos ser grupo hoje. E por isso depende tanto de uma execução perfeitamente afinada pelos bailarinos — que estão brilhantes como indivíduos, mas, como bando, ainda quase.

É uma interpretação interessante pro momento do coreógrafo também dentro da companhia. Ainda novo no grupo, a maior parte da sua experiência foi durante a pandemia e a crise. Ele mesmo ainda está se tornando parte desse bando. Mas chega a essa estreia instigando o público, que quer saber que cabeça é essa que faz mover desse jeito. E não existe tom melhor pra amarrar uma mostra coreográfica.

O conjunto das três obras foi apresentado sob o penoso título de Composição #3, que diz nada, e leva o prêmio entre os títulos ruins que a mostra já teve. Em si, ele desvia o objetivo, e não consegue reconhecer que o valor do Balé da Cidade é o Balé da Cidade. E que ele não ficou devendo nada aqui.

Acontece. Que o título seja uma marca ruim pra ficar no passado. O que realmente importa são as marcas para o futuro. Em 1977, a primeira mostra coreográfica levou para o palco a primeira coreografia criada por Luis Arrieta, Camila, que foi depois incorporada ao repertório do BCSP. Uma obra poder ser incorporada ao repertório da companhia é algo importante. Esclarece que a mostra não é só exibição, não é uma forma de ocupar o elenco. Ela tem um propósito artístico, e ela de fato serve pra revelar talentos.

Desde 2009 uma obra de mostra coreográfica não é incorporada ao repertório do Balé da Cidade. De lá pra cá, tivemos momentos de muita criação, mas nem sempre com o tempo e o cuidado pra que as obras pudessem se desenvolver e se apresentar plenas e realizadas. E toda obra precisa. De mais temporadas, de mais tempo de ensaio, tempo de maturação, experimentação, pra chegar na melhor versão de si. E não dá pra fazer isso com 8 solos e duos de 5 minutos — o que talvez fosse parte do problema dessa década em que parece que a mostra não alcançou seu propósito maior.

O que encontramos nessa ocasião na Cúpula é uma ótima realização. O conjunto da noite forma o programa completo mais interessante que me lembro de ver do BCSP nos últimos anos. Ele nos mostra que essa companhia não é só promessa, ela é também realização. Que esse elenco realmente é forte. E que existe mais talento por ali do que já sabemos. Que nos próximos anos o Balé da Cidade consiga explorar, potencializar e fomentar esse talento todo. Esse elenco merece, essa companhia merece, e São Paulo merece.

PLACEBO

Concepção e Direção Fernanda Bueno

Assistente de Direção Antônio Carvalho Jr.

Criação Colaborativa Antônio Carvalho Jr., Fernanda Bueno, Yasser Díaz

Provocador Kleber Pagú

Criação Musical Helena Piccazio, Márcia Fernandes, Sanderson Cortez Paz, Vinícius Frate (OSM)

Desenho de Luz Melissa Guimarães

Figurinos do Acervo BCSP

Ensaiadora e Condutora Musical Carolina Franco

Elenco Fernanda Bueno, Yasser Díaz

 

OLHO D’ÁGUA

Concepção, Direção e Coreografia Fábio Pinheiro

Criação Musical Helena Piccazio, Márcia Fernandes, Sanderson Cortez Paz, Vinícius Frate (OSM)

Desenho de Luz Melissa Guimarães

Figurinos do Acervo BCSP

Ensaiadora e Condutora Musical Carolina Franco

Elenco Alyne Mach, Carolina Martinelli, Erika Ishimaru, Marina Giunti, Rebecca Ferreira

 

ALDEIAS MORTAS

Concepção e Coreografia Márcio Filho

Criação Musical Helena Piccazio, Márcia Fernandes, Sanderson Cortez Paz, Vinícius Frate (OSM)

Desenho de Luz Melissa Guimarães

Figurinos do Acervo BCSP

Ensaiadora e Condutora Musical Carolina Franco

Elenco Bruno Rodrigues, Isabella Maylart, Harrison Gavlar, Manuel Gomes, Victoria Oggiam

 

Fotos Rafael Salvador