Críticas

Para ver e se agradar

Na programação da Semana Paulista de Dança do MASP, a SPCD oferece um programa pra agradar a plateia.

A São Paulo Companhia de Dança ocupou um dos dias da programação da Semana Paulista de Dança no MASP. Um programa leve e de fácil acesso, mostra obras dentre as que mais agradam do repertório atual da companhia, em propostas que combinam com a companhia, com o elenco, e com o público numeroso que veio assistir.

Com uma década de trabalho e foco em formação, educativo e mediação, a SPCD tem conseguido fazer o que que muitos disfarçam atrás de um discurso de “a dança não tem público”. Tem. E não só pra essa companhia. Frequentemente ver dança em São Paulo é descobrir que existe público. Claro, não para qualquer coisa, não para qualquer espaço, não para qualquer ocasião. Mas temos gente que quer ver dança. No geral falta tato na hora de combinar essas pessoas com as programações.

Aqui, não falta nada. A diversificada programação da Semana Paulista de Dança, acolhida por uma instituição reconhecida, num evento gratuito e de fácil acesso abre todas as portas possíveis para o sucesso merecido que o evento colhe desde sua criação, ano passado. Só dois anos, e o evento já se marca no calendário da dança como esperado, bem feito, e necessário.

“Ngali”, de Jomar mesquita, abriu o programa do quarto dia do evento. A partir de referências a movimentos das danças de salão, transpostos em estruturas de dança contemporânea, a obra se constrói num formato de duos que se alteram pela chegada e pelo contato com um terceiro elemento, assim discutindo as questões do título, de origem aborígene, que significa “nós dois, incluindo você”.

Os contatos contemporâneos e a adição das terceiras pessoas nas duplas (que vêm e vão, se alteram e se repetem), vão do fugaz ao intenso, mas sempre provocam mudanças significativas na cena — e especialmente nos níveis da movimentação, bem explorados pelo coreógrafo, e retrabalhando movimentos-chave que se reconhecem das danças de salão, adaptados ao novo contexto.

A segunda obra do programa é “Fada do Amor”. A melosidade do título é perdoada pelo interesse desse duo, coreografado por Márcia Haydée em 1993, que nos apresenta um adágio leve, preenchido de pés ágeis e que batem, seja no ar, durante os deliciosamente bem executados carregamentos e sustentamentos, seja no chão, com corridas ligeiras da bailarina pela cena.

De participação masculina reduzida a um difícil e essencial carregar, esse duo é um espaço para fazer brilhar uma solista — algo que a coreógrafa entende bem. Ele vem recortado da versão de Haydée de “Coppélia”, e, por isso, pode parecer um tanto sem contexto. É uma demonstração, que não dá espaço para entendermos personagem ou narrativa. Se lhe falta uma história, é porque seu título é o nome de uma personagem, e não há de fato personagem retratada, ou tempo para isso. Mas isso é mais uma questão de inadequação do título do que de inadequação da obra.

O programa se encerra com “Agora”, de Cassi Abranches. “Agora” estreiou em junho, e lá já foi elogiada pelo sucesso de sua leveza e interesse coreográfico. O da Quarta Parede já havia mencionado a necessidade de aproveitar e ver a obra várias vezes, na dúvida de quando ela voltaria aos palcos. Voltou depressa, e agradecemos por isso.

Quando começa “Agora”, é o som das batidas de relógio da trilha sonora que nos transporta ao universo do tempo e de seus desdobramentos. Escolhido em sua polissemia como tema da obra, o Tempo se reflete em trilha, em coreografia, em corpos, em movimento. E que coreografia! Tudo é uma questão de encaixes, e eles são demonstrados nas formas de articular os bailarinos em cena, e insistem em gestos e passos que marcam algumas passagens. Dentre eles, o melhor é a sequência repetida algumas vezes, de um salto feminino explosivo, que coloca as bailarinas na horizontal, quando encontram e se encaixam nos braços seus parceiros.

O aspecto mais positivo da obra é seu trabalho de conjunto — algo que ainda tem sérias dificuldades em encontrar criadores capazes de o realizar. Na coreografia de Abranches, há espaço para formar o conjunto, desmembrá-lo e reconfigurá-lo em combinações inúmeras, reagrupar, e mostrar o valor daquilo que mais seduz em coreógrafos: a cabeça que parece operar em um nível completamente distinto do padrão, como se criassem e resolvessem constantemente quebra-cabeças de espaço e de corpos.

A satisfação dessas resoluções aparecem estampadas no próprio elenco. Não que eles recebam uma indicação de “é pra dançar sorrindo”, mas parece, sim, que há uma atitude inevitável ao dançar e assistir essa obra, que é o aproveitamento.

Não que toda obra possa (nem deva) nos olhar e sugerir um “só aproveita”. Mas como é gostoso (!), enquanto público, sentar na plateia e poder aproveitar… O palatável, o aprazível, fazem sentido, cativam e interessam. Quando bem feitos e com originalidade, como é o caso, não ficam devendo absolutamente nada. E são uma aposta sem erro para esse tipo de curadoria de impacto de recepção: quem assiste a essa programação sabe que pode voltar, sem medo e com gosto, e ver dança.

 

* o texto dessa crítica traz trechos de críticas anteriormente publicadas sobre essas mesmas obras, disponíveis no original e na íntegra nos seguintes links: Ngali / Fada / Agora