Críticas

Inundando plateias

Temporada de sucesso de “O Lago dos Cisnes” encerra as comemorações dos 10 anos da São Paulo Companhia de Dança.

Escrever sobre “O Lago dos Cisnes” é uma tarefa perigosa. Montá-lo, muito mais. Mas foi essa a escolha da São Paulo Companhia de Dança para encerrar a comemoração de seus 10 anos de atividade — uma nova montagem, completa, em temporada de três semanas esgotadas no Teatro Sérgio Cardoso. E é essa perigosa tarefa que eles nos entregam.

Quatro casais assumiram os papeis principais, com diversas variações de elenco para dar contra desse cronograma de fôlego. E para tentar abarcar todas essas possibilidades, foi preciso assistir a esse “Lago” 5 vezes, ao longo das três semanas. Em cena, uma companhia que ainda é jovem, mas cheia de maturidade. Uma companhia cujo trunfo é seu elenco, fazendo aquilo que fazem de melhor: dançando bem.

Há muito o que se pensar para um evento dessa proporção. Sobretudo quanto à magnitude da obra: o “Lago” é uma das coreografias mais reconhecidas e que mais alimentam o imaginário coletivo da dança, e sobretudo da dança clássica. Não se trata de uma obra única: como todo repertório, ele vai acumulando ao longo do tempo um tanto de fato e um tanto ainda maior de mística e de presunção acerca do que é, do que pode ser, e do que é que realmente faz um “Lago”.

Ver essa obra como um todo é tentar ultrapassar o sem-número de alterações de enredo e variações de trilha, de encenação, de cenário e figurino, e, principalmente, de coreografia, para ver aquilo que fica no imaginário coletivo dessa obra, carregando seu peso há gerações. Acessar esse conteúdo é tarefa arriscada: é muito fácil perder a característica própria e a assinatura e dar lugar a uma tentativa de cópia — que teria seu valor proporcionalmente reduzido.

Não é o caso. Ainda que vejamos um tanto de sinais internacionais, expatriados e genéricos do “Lago”, aquilo que marca essa versão são suas particularidades. Uma delas, os pequenos detalhes de liberdade de estilo coreográfico de Mário Galizzi, que não se prendem completamente na reprodução de uma ou outra versão anterior do balé. Todos os básicos estão lá, toda a estrutura está colocada, mas há liberdade suficiente para haver interesse.

Papeis em que a tecnicidade é explorada se destacam. O Bufão, interpretado por Yoshi Suzuki e Hiago Castro é seu maior exemplo, arriscando, inclusive, eclipsar o — por vezes amuado — personagem do Príncipe Siegfried. Se Suzuki apoia sua visibilidade no escândalo de sua virtuose e showmanship — frequentemente aparecendo como uma performance de um homem só, que quase completamente descarta a situação cênica em que é colocado (algo que não é de todo positivo) —, Castro compensa um tanto de insegurança cênica (que virá com o tempo) esbanjando atuação. Ele não se descola da cena, pelo contrário, ele a dirige, na melhor definição de papel coadjuvante — não porque seja menos bem feito, mas porque não seja um dos sujeitos principais do enredo e trabalhe insistentemente para que seu talento eleve aquilo que é o principal na cena.

Isso não é nenhum demérito, pelo contrário. É fundamental aceitar que esse não é — e não deveria nunca ser — “O Lago dos Bufões”. O Bufão é inclusive uma contenda em “Lago” e críticos como Alastair Macaulay já defenderam que ele não deveria existir, assim como originalmente, porque esse é um balé trágico, e o cômico dos efeitos do bufão não corresponde nem à corte em luto que é retratada, nem ao tema, no geral, triste da obra. Com um tanto de liberdade, ele é frequentemente incorporado como forma de deslumbre técnico, e é essa a estrutura aqui repetida.

Felizmente, o encaixe narrativo é bem feito, e o Bufão não faz tanto um alívio cômico — que “Lago” não precisa —, mas nos oferece uma oportunidade para melhor olhar destaques desse elenco. Com o bônus de que Castro é um daqueles raros bailarinos que giram para os dois lados, o que ele demonstra em sequências técnicas que não rivalizam a execução das exímias e elaboradas piruetas de Suzuki, mas que entregam à plateia conteúdo denso o suficiente para valer a pena uma volta ao teatro.

A questão da dramaturgia é um dos pontos altos dessa montagem, que contou com a participação de Vivien Buckup nessa função, pouco esclarecida em seu crédito de “professora de dramaturgia” — que poderia abarcar uma quantidade enorme de funções. Comparando os resultados cênicos, sobretudo entre convidados e elenco da casa, o que se pode ver é um trabalho de encontro dos personagens pelos bailarinos — e ai, os da casa, que, supõe-se, têm mais tempo de trabalho com ela, saem na frente. Nem sempre na técnica, claro, mas constantemente na interpretação, no entendimento de que aquilo que eles dançam vai além das formas corporais, mostrando uma construção de verdadeiros personagens, não apenas figuras cênicas.

 

É o tipo de caso que vemos também nos Cisnes de Luciana Davi. Sua Odette chega em cena já extremamente sofrida e desolada. Ela carrega o peso de uma história que não começou há 30 minutos, no abrir da cortina, e nesse peso é possível sentir a construção de um passado para seu Cisne Branco. Ainda mais especial é a transição irretocável entre seus dois Cisnes. Nos sentimos malignos juntos de seu Cisne Negro. O mesmo efeito acontece com o Cisne Negro de Paula Alves: às 23h de uma sexta-feira, ao invés do sono os olhos não queriam nem piscar para não perder sua interpretação.

Só através de interpretação aguçada é possível cumprir o verdadeiro papel do Cisne Negro, que não é técnico, mas estético: seduzir não apenas o príncipe, mas o público. Quando ficamos presos na armadilha de torcer para ambos os Cisnes, partilhamos da experiência de Sigfried, somos colocados dentro da máquina da tragédia — em seu sentido mais tradicional. E ai, a melhor sequência de fouettés que pude ver nessa temporada (a de Alves), compre seu verdadeiro papel artístico na obra: não mostrar o trabalho sobre-humano da bailarina, mas o poder sobre-humano da personagem — é o equivalente em dança da Ária da Rainha da Noite da “Flauta Mágica”; é um exercício de dominação estética da cena.

Uma das coisas que encanta nessa montagem é um trabalho acertado da direção com a variação de elenco. Sim, há uma necessidade prática de variação, pelo esforço e desgaste de dançar esses papéis, mas há uma necessidade ainda maior que é associada ao elenco: a vontade de dançar em múltiplas posições. Como resultado, vemos um elenco fascinado pelo seu trabalho, que se recusa a acreditar em papeis menores ou secundários, e quem sai ganhando é o público.

Isso se destaca em qualquer passagem que dê algum espaço, como as variações do Pas de Trois do primeiro ato, os solistas das danças de corte, e os Grandes e Pequenos Cisnes dos atos pares. Os Cisnes, inclusive, são chave nos desenhos coreográficos. Os atos à beira do lago são tomados por desenhos e movimentações precisas e delicadas, e é o cuidado com as formações, os números e os encaixes que ilustram o melhor do trabalho da coreografia de Galizzi, fiel ao pensamento da época da primeira versão do balé, mas sem excessivamente procurar a reconstrução, mostrando sua capacidade de coreografar conjuntos e suas linhas, e trabalhando entre o tradicional e certas tendências inovadoras que são bem recebidas.

O Pas de Quatre dos Pequenos Cisnes, curiosamente uma cena completamente avulsa ao enredo e, por seu efeito — sonoro e coreográfico — tornada incontornável na história da dança clássica, é o momento de observar a dinâmica de trabalho conjunto em seu melhor estado. As duas variações de elenco funcionam muito bem e vão ganhando ainda mais segurança ao longo da temporada, que termina num ponto alto de execução.

Mas é o todo do aspecto do “Lago” que o fortalece, fazendo um ambiente dramatúrgico, técnico e cênico ideal para o Pas de Deux do Cisne Branco, com uma coreografia que coloca o casal metaforicamente na água: flutuando, nadando, em dinâmica e plasticidade incríveis, tanto para Thamiris Prata quanto para a convidada da temporada, Luiza Lopes.

Lopes, que deixou a SPCD em 2015 para o Royal Swedish Ballet faz falta por sua característica única. Extremamente controlada, é nas passagens que mostram sua resistência (no sentido mais corporal e muscular possível) que tudo que ela faz parece se dissolver na beleza de suas linhas, marca de seu trabalho desde sempre. Poucos papéis lhe seriam tão apropriados quanto o Cisne Branco, interpretado na maior fragilidade e delicadeza. Acima de tudo, o que seduz é sua confiança: Lopes quase dispensa partners quando dança.

No entanto, ela vem acompanhada de Lucas Lima, também convidado, atualmente solista do Ballet Nacional da Noruega. Lima já coreografou para a a SPCD, e agora vem aqui dançar. Dentre os Sigfrieds, ele não é o melhor solista — inclusive, teve poucas chances de se apresentar, apenas dois dias na temporada, e mais tempo talvez o deixasse mais à vontade. Mas ele leva a sério o trabalho do bailarino na dança clássica do século XIX: mostrar a bailarina, o que ele faz muito bem.

Em seu favor, Sigfried é um papel extremamente complicado, por seu pouco desenvolvimento. Entre o meninote que se recusa a crescer e o adolescente rebelde, é um papel criado para ser suporte, não principal. Talvez ainda menos que suporte, premissa. Temos um Sigfried porque precisamos de algo que nos leve ao lago, e precisamos da promessa quebrada, mas ele não é um foco desse balé, mesmo sendo o único presente nos quatro atos, o que o deixa com um tom de abandono dramatúrgico perceptível na construção tradicional da obra — marcada sobretudo pela existência, nas primeiras versões (e em algumas posteriores) do personagem Benno, amigo do príncipe que de fato dançava com Odette em seu lugar (necessidade técnica imposta por Pavel Gerdt, estrela que, já aos 50 anos, interpretava Sigfried na montagem de Petipa).

Aqui, o efeito da professora de dramaturgia é mais uma vez sentido na comparação entre convidados e artistas da casa. Se Lima e Emmanuel Vasquez são ótimos partners, esse último com algumas finalizações de movimento realmente irretocáveis, do tipo que causa espanto, é especialmente interessante ver as abordagens que Geivison Moreira e André Grippi lhe dedicam.

Em personagem o tempo todo, Moreira faz um Sigfried brusco, pronto a agir impulsivamente. Grippi, por sua vez, se apoia no lado da eterna infância e faz um Sigfried quase teen. As escolhas, bem distintas, funcionam. Mostram lados diferentes de um mesmo personagem e abrem o espaço para que possamos pensar o lugar do bailarino numa obra como essa, mas, sobretudo, nos efeitos da caracterização e construção consciente de personagens que parecem estudadas, e não copiadas a partir de alguma forma.

Escapar das formas padronizadas é como um mote das interpretações dessa montagem, o que sustenta o gosto por rever múltiplas vezes a mesma obra. É o caso de Rothbard, normalmente também um mero acessório narrativo, e aqui levado à cena com seriedade. O risco é o de compensar com o exagero e transformar um personagem já carregado em uma caricatura — e se rirmos dele perdemos toda a seriedade da tragédia. Quem melhor equilibra os pontos é Joca Antunes, que constrói um Rothbard com o qual podemos nos importar. Angustiado, provocante, traído, ele navega pelos momentos do personagem na história e lhe da carne, não caricatura, precisando atravessar, contudo, seu figurino e caracterização exagerados.

Não vivemos em tempos propensos ao trágico, que frequentemente parece deslocado e risível, e essa é uma das grandes dificuldades de se remontar esses balés, originalmente feitos para um público bem mais disposto ao trágico. A atual sensibilidade do público tem exigências muito distintas, e é ai que mora todo o risco de se tentar fazer cópias de obras do passado. Balanchine defendia, acertadamente, a necessidade de atualização: as histórias ainda têm relevância para o público, mas a forma de contá-las precisa ser adequada. É o mesmo princípio pelo qual encenar Shakespeare em linguagem antiquada é problemático: seu trabalho não era passadista, era atual, era feito para aquelas pessoas naquele momento, e não tinha nenhum medo de ser popular.

O balé também precisa desse tipo de estratégia. Como nem tudo muda com o tempo, há um tanto que continua funcionando, enquanto outro tanto precisa ser adaptado. E alguns detalhes levam longe. É o caso, nessa produção, do terceiro ato, em que vemos a corte de Rothbard e Odile com figurinos que aparecem velados de preto: entrevemos as cores e os temas, mas Fábio Namatame brinca com a noção do feitiço delicadamente cobrindo os figurinos e fazendo com que essa corte toda pareça parte do feitiço de Rothbard.

Cenicamente, as entradas e saídas de Rothbard e Odile, incluídas nas danças nacionais, criam um jogo de esconder e enganar que fazem com que o ato, normalmente um divertissement desnecessário, frequentemente desperdício cênico, seja ocupado de dramaturgia e dramaticidade: aqui ele deixa de ser o ato em que esperamos o pas de deux do Cisne Negro e se torna uma cena completa, altamente apreciável.

Como seria de se esperar, numa produção desse porte nem tudo é positivo. Os figurinos, por exemplo, são irregulares. Se o cortejo de Odile e os cisnes aparecem bem caracterizados, a corte do primeiro ato é um excesso de cores estranho e que barateia o momento. Seu maior problema é que, mesmo quando feitos para a história e demonstrando um tanto de bom pensamento por trás deles, carregam uma falta fundamental: podem ser feitos para a obra, mas não são para a coreografia. Organizar padrões de cores em personagens estáticos é uma coisa, mas quando eles se movem e dançam em várias combinações é que vemos o problema dessa variabilidade.

A luz também foi bastante problemática. Melhorou drasticamente ao longo da temporada, com pequenos ajustes e muito mais preparo dos técnicos, que finalmente iam se acostumando com aquilo que precisavam iluminar, mas quem viu apenas os primeiros dias encontrou uma cena mal resolvida. O defeito geral é a proposta em si, que não valoriza exatamente aquilo que temos em cena. Não é uma iluminação de assinatura, mas como genérica deixa a execução a desejar. O maior dos problemas, no entanto, é um defeito de gravação do som, especialmente audível durante o terceiro ato. Sim, não poder fazer a música ao vivo é algo compreensível para a nossa realidade — a gravação problemática, menos.

Fora esses, um ou outro descuido dramatúrgico, no sentido amplo da obra. As mortes ao final do balé são momentos de ápice e que nem sempre parecem sê-lo.

Entre pulos desajeitados, cenas muito rápidas e olhares que se espalham pelo lugar errado, é fácil perder o ponto alto do enredo, ou não lhe dar a devida importância — como se ficasse faltando uma direção de câmera a nos orientar. Outras passagens, como o final de Rothbard, historicamente carecem de desenvolvimento. Como esses momentos culminam bem ao final da obra, fica o risco da percepção de um “não deu tempo para arrumar o final”, que certamente não é o caso.

Já o epílogo, um final feliz dentro do final infeliz, é controverso por natureza. Entra naquela leva de detalhes que às vezes são alterados pela sensibilidade do tempo. É inegável que o público gosta de um final feliz, e essa não seria a primeira versão a fazer isso. A apoteose do reencontro dos amantes pós-morte foi incluída na versão de Petipa do balé, de 1895, mas não fazia parte do libreto trágico original, de 1877, que tinha a cena, depois recuperada, do lago inundando o palco. Durante a Rússia soviética, apareceram inclusive versões completamente felizes, em que os amantes vencem Rothbard, o que pode ser questionado, mas que dá uma solução concreta à questão.

Trata-se de uma escolha complexa, para a qual não existe resposta certa. Seria inaceitável basear qualquer proposta em uma percepção de “foi feito assim e por isso precisa continuar sendo assim” porque isso claramente não corresponde a fatos. O “Lago” já foi feito de diversas maneiras e nenhuma delas garante autoridade sobre as demais. Aqui, a escolha tenta usar uma fórmula de “o melhor de dois mundos”, incluindo o trágico e o feliz, como fazem diversas outras grandes companhias.

Pessoalmente, esse tipo de solução não me agrada. Por motivos de dramaturgia e de narratividade que normalmente não me convencem nas explicações cênicas e do desenvolvimento do enredo para além do “esse é o final que vai agradar mais o público”. Mas, que possamos ter opiniões divergentes e tão pessoais sobre “como eu prefiro o meu ‘Lago’” só adiciona à mística da obra.

O “Lago” não é uma só coisa, e não é tampouco uma coisa definida. Constantemente mutável, ele vai se construindo cumulativamente a cada nova versão, e entrando nesse imaginário de mais de um século. Processo perigoso… Por seus riscos, é um tanto quanto luxuoso que tenhamos agora uma versão nossa de “O Lago dos Cisnes” — e bastante feliz que os acertos da São Paulo Companhia de Dança sejam tantos.