Críticas

Retrospectiva 2019

Com 2019 terminado, o Da Quarta Parede elege 9 pontos pra revermos e repensarmos o tanto de dança que passou por aqui, e os seus variados caminhos, tendências, e características.

Nesse ano, foram 197 coreografias assistidas, e quase 30 textos de críticas por aqui, pra discutir uma parcela dessa produção, além daquilo que foi publicado no Criticatividade e no formado de Crítica de Minuto.

Com uma produção diversa e enorme, a gente termina o ano perguntando, o que foi a dança de 2019, e oferecendo essas 9 pistas.

1. Coreografias de Grupo

A tendência não é novidade, mas está cada vez mais forte: aos poucos vamos atravessando o vale do “ensimesmismo” dos solos herméticos, de si para si (e para os amigos próximos), e vamos voltando a atenção para trabalhos de conjunto. As coreografias de grupo são uma resposta linda às dificuldades pelas quais a dança passa: artistas e criadores insistem bravamente em fazer dança juntos, em manter trabalho e pesquisa continuados em grupos, e em colocar vários corpos no mesmo espaço.

Para o público, é o verdadeiro luxo das artes da cena, mas que aqui não se traduz como “excesso”. Vimos “Agora” de Cassi Abranches ganhar o APCA de Coreografia, e “ELO” da T.F.Style de Espetáculo (Estreia). “Plano Sequência: Take 2” da Jorge Garcia foi reconhecida como Espetáculo (Não-Estreia), e o elenco de “Fúria” da Lia Rodrigues recebeu o prêmio de Interpretação. Todos esses, trabalhos de grupo. Por toda parte, muitos outros núcleos e coletivos e grupos têm insistido em sua continuidade, e na potência de seu esforço em estar junto e em dançar junto.

2. Temporadas prolongadas, e em múltiplos espaços

As companhias tem feito bonito em mostrar sua capacidade de articulação. Estamos saindo do sistema trágico de obras que dançam só um final de semana, e encontrando temporadas alongadas, estendidas, e temporadas em espaços múltiplos, com diversos grupos se apresentando em múltiplos locais da cidade, oferecendo mais possibilidades de proximidade, e chances ainda maiores de os encontrarmos.

Vimos isso em ocupações, mas também em turnês itinerárias. Foi possível escolher em que espaços assistir a uma obra, e ressignificar o conceito de temporada de uma forma maravilhosa, que torcemos que domine a circulação da dança em 2020. Foi o que levou o Núcleo EntreTanto, o Taanteatro, o Pé de Zamba, e Marcus Moreno, por exemplo, pra diversos cantos de São Paulo. Espalhando a dança, aumentando seus públicos, e os públicos da dança. Somos gratos.

3. Espaços sob ameaça e suas respostas

Ares sombrios vieram pesar sobre algumas das casas e instituições que são emblemas da dança de São Paulo. E elas têm respondido à altura. A mudança da forma de gestão do CRD gerou uma movimentação como não víamos há anos, e tem dado frutos em forma de saber-fazer, e de discussão da administração participativa, questionando o que queremos para a nossa dança, e como a Secretaria de Cultura pode agir para garantir esses desejos.

A Oficina Cultural Oswald de Andrade se viu ameaçada, causando uma reação enorme das várias classes artísticas que lá habitam e a ocupam. Indicada a vários prêmios, em diversas linguagens, a programação da casa recebeu um APCA de Dança, que também reconheceu o Sesc SP com o “Grande Prêmio da Crítica” pela programação contínua de dança em suas unidades da capital, interior e litoral. Às ameaças, a arte responde produzindo mais, se assistindo mais, frequentando mais, e insistindo no direito de sua ampla difusão, e no dever que as diversas instâncias públicas têm de garantir o acesso aos bens culturais.

4. Os espaços paulistanos da dança

Falando em poder público, tem um tanto de confusão com a dança pela capital paulista. O Centro Cultural Olido, uma casa da dança por excelência teve o espaço do Centro de Dança Umberto da Silva reduzido, com uma nova destinação de algumas salas para aquilo que tem sido afirmado como a nova função do espaço: a música eletrônica. Também diminuíram (e muito), as programações cênicas de dança do espaço.

Depois de um hiato sem curadoria de dança, o Centro Cultural São Paulo volta essa arte para a sua programação, mas com a triste extinção do icônico Semanas da Dança, um dos mais longevos festivais de dança de São Paulo, preterido em favor da programação ainda esparsa do “Dança Menor”, e de outras programações pontuais, mas muito interessantes, que têm recuperado o lugar histórico desse espaço como palco da dança. Que 2020 reafirme nossos espaços tradicionais, recupere aquilo que foi perdido, e conquiste mais palcos e mais pautas para a dança.

5. Onde está o Balé da Cidade?

A companhia municipal de dança sofreu em 2019 um caso de chá de sumiço. Em meio à finalização das notáveis comemorações dos 50 anos do Balé da Cidade, a companhia só fez uma estreia coreográfica no ano, e dançou alguns repetecos do repertório de 2018. Pela primeira vez, fui mais ao Theatro Municipal para ver outras artes, outros grupos e outras obras, do que a nossa companhia.

Ausência triste e sentida, na contramão do que vimos nos dois anos passados, desde que Ismael Ivo assumiu a direção do grupo, o transferiu finalmente para a Praça das Artes, e mostrou uma produção intensa e variada. Se, então, já víamos a fixação pelos grandes efeitos visuais, em 2019 isso foi só o que vimos, com o cenário — deslumbrante — da “Biblioteca de Babel”, e… mais nada?

O drama começou no início do ano: a companhia não anunciou sua temporada 2019, e o temor pareceu se concretizar — não tivemos uma temporada. O Municipal já anunciou o programa lírico intenso de 2020, todas as notícias mencionam a presença das outras linguagens e da dança no Theatro, mas ninguém fala o que vai ser dançado, quando e onde. Aguardamos uma confirmação e anúncio de temporada, boas estreias, e recuperações do repertório — temos 50 anos de material precioso à escanteio! #voltaBCSP

6. Festivais, festivais, e mais festivais

Os agrupamentos de apresentações em eventos foram uma das marcas desse ano que passou. Festivais de curadoria, festivais de programação, festivais de múltiplas linguagens artísticas, teve de tudo por aqui. Alguns, melhoraram aquilo que apresentam e encontraram resultados de imenso sucesso, artístico e de público. Foi o caso da Semana Paulista de Dança do MASP. Mas também vimos um Abril Para a Dança espalhar programação pela capital, o ETÉ – Festival do Corpo ocupando o Municipal, e o ABCDança levando um grande circuito para a grande SP.

2019 teve Dança à Deriva, Visões Urbanas, Dança se Move Ocupa, e Festival Contemporâneo de Dança, pra mostrar a potência da produção e da articulação do povo que faz dança. Sempre imensa, a Bienal Sesc de Dança continua seguindo um formato que causa impacto, mas ainda carece de uma afirmação curatorial. O grande evento do ano foge de São Paulo: a Bienal Internacional de Dança do Ceará continua nos dando lições.

7. Visitas internacionais

O nosso deslocamento geográfico faz com que várias produções de grandes eixos de circulação do mundo tenham dificuldade em chegar aqui. Mas o ano não passa sem algumas menções às visitas internacionais. Se há algumas décadas elas eram definidoras de tendências e caminhos para a dança de São Paulo, hoje, com a maior facilidade de acesso remoto, elas servem mesmo para o contato em primeira mão, e para a experiência real de assistir.

A tradicional Temporada de Dança do Teatro Alfa, trouxe Sankai Juku e os Ballets Jazz de Montréal, e o Mozarteum trouxe o lindo Dance Theatre of Harlem. A Korean National Contemporary Dance Company passou pelo Municipal, o Balé Nacional da China lotou o Credicard Hall, e a Bienal do Sesc trouxe Luis Garay, La Ribot, e Cia Alias, entre tanta coisa. Mas o maior evento internacional foi a passagem de Yoann Bourgeois pelo Sesc Pinheiros.

8. Novos sopros na Quasar Cia de Dança

Não é novidade que uma das maiores companhias de autor do Brasil, a Quasar, tem enfrentado complicações. Mas esse foi um ano brilhante pra eles. O coreógrafo Henrique Rodovalho terminou o ano anunciando uma residência de cinco anos com a São Paulo Companhia de Dança, com a qual já criou e foi premiado, além de ter passado por outras companhias.

Mas a própria Quasar tem se articulado para enfrentar as dificuldade, em três diferentes elencos, que têm dançado muito, cada um uma obra distinta. O formato é diferente, mas eficiente. Que seja o indício de uma boa recuperação e muito sucesso pra esse povo que insiste em fazer dança bem feita.

9. Ações formativas

Minha tendência preferida de 2019 é a atenção que tem sido dada ao público. Chega de reclamar da plateia vazia, da incompreensão das propostas contemporâneas, e de esconder má vontade por trás do que se finge de inovação. Um tanto de gente que quer fazer dança, quer dançar, quer ser assistido, e quer falar através a obra, pela obra, sobre a obra, e com o público, tem se mobilizado em diversas possibilidades de ação junto aos seus públicos.

Numa outra frente, a formação olha para os próprios artistas, e nos mostra novas estratégias de sua preparação para darem continuidade a esse ciclo de fazer e receber dança. O Núcleo Luz está mais forte do que nunca, e o Programa de Qualificação em Artes mostrou o sucesso de seu projeto artístico espalhado pelo interior paulista.

Saímos dos velhos, cansativos e limitados bate-papos após o espetáculo, que frequentemente serviam para amigos se elogiarem. Entramos numa era de ações formativas reais, em muitas ordens e tamanhos, que ajudam a levar o público para a dança como um todo. O conforto de se sentir capaz de apreciar uma obra vai ser definidor, nesse ano e nessa década que se iniciam, não por uma questão de ser simples, mas por uma questão de ser eficiente e de ser comunicativo.

E chegar ao público é fundamental, pra cada vez mais podermos dizer: olha esse tanto de dança que tá sendo feita. Ela é boa, ela vale a pena, ela interessa, ela merece mais espaço, mais palco, mais investimento, mais política pública, mais plateia, mais artistas. E é isso que queremos e esperamos pra 2020. Mais dança!