Críticas

À Flor da Pele / Novos Ventos | Raça Cia. de Dança

Com a nova direção artística de Jhean Allex, o título da reconhecida obra de Roseli Rodrigues, Novos Ventos, aqui parece soprar sugestões sobre o futuro da própria Raça Cia de Dança, que vai se encontrando entre o novo e a memória, como demonstra o intenso programa apresentado no Centro Cultural São Paulo.

Em temporada no Centro Cultural São Paulo, a Raça Cia. de Dança apresenta programa duplo, com À Flor da Pele, coreografia mais recente do atual diretor artístico da companhia, Jhean Allex, junto de Novos Ventos, criada em 1999 por Roseli Rodrigues, fundadora da companhia. No palco, se misturam o passado e o presente do grupo paulistano, que aponta seus possíveis caminhos através de uma reflexão coreográfica, mostrando seus novos trabalhos, mas deixando clara sua herança, como pontua o atual diretor. Jhean Allex foi por muito tempo bailarino da companhia, e, antes de assumir a direção, já assinava remontagens das obras de Roseli Rodrigues, então, não é surpresa que vejamos em seu trabalho referências a essa bagagem, e certas formas de continuidade.

À Flor da Pele interroga público e bailarinos sobre situações da vida atual, marcadas por algo que se traduz coreograficamente como uma violência constante, colocada desde o início da cena em pantomimas de conflito, gestos de provocação, e caracterização de assertividade e de disputa entre os indivíduos, pelo espaço em que estão. Se levamos a sério a pergunta feita pela obra, “o que te deixa à flor da pele?”, a resposta que encontramos no palco trata de uma violência que não é exatamente a violência urbana, mas a violência das relações interpessoais.

O chão é pisado com força pelos bailarinos, e os corpos, e seus estados, são mantidos tensos e hiper-musculares. Todo gesto é esforço, é carregado e é difícil, nessa coreografia excessivamente masculina, que inclusive começa com as mulheres sendo expulsas do palco, já numa estrutura conflituosa. Poderia se dizer que o elenco masculino se sobressai, mas é um caso da coreografia, e não das intérpretes, que terão, em Novos Ventos, o espaço para mostrar sua capacidade técnica. Mas em À Flor da Pele, mesmo de volta à cena, a coreografia para as mulheres é mantida numa (também tensa) dicotomia, que as deixa aladas e aéreas, em grande oposição aos bailarinos, que massacram o chão em aparentes demonstrações de força.

A impressão que se cria é de uma posição incomodamente subjugada, que poderia ser levada como um entendimento de violências domésticas e de relações abusivas. Porém essa leitura tema não é exatamente desenvolvida na cena. Sozinhas ou em parcerias, as mulheres tem cenas mais líricas, lânguidas, contra a brutalidade marcada e estereotipada nos homens, que também se desdobra em provocações e zombaria sobre a masculinidade, sobre a “macheza”.

A dificuldade com a obra é que essas questões, por serem tratadas em um tom por demais leve, também são recebidas pela platéia com leveza. E onde deveria haver uma reflexão sobre a violência e uma resposta à altura a seu respeito, há um incômodo riso compartilhado pelo público, para cenas que nada têm, ou deveriam ter, de cômico.

Apenas ao final da obra, quando o conjunto retoma com novas dinâmicas algumas das imagens e formas já apresentadas ao longo da coreografia, as mulheres são colocadas em cena de forma mais responsiva, interagindo e respondendo na mesma moeda — que é uma moeda de violência — à brutalidade dos homens. Assim, elas se apegam às formulas das (não tão) pequenas violências cotidianas, que elas replicam para delas escapar, e o momento nos sugere um ciclo, pesado e infeliz, de reproduções de crueldade. Ninguém escapa dessa crueldade, e a única chance parece ser a de inverter a posição de vítima, se tornando, também, cruel.

Proposta tensa, de fato apresenta, sob certa lente, um reflexo desse tempo. Não o soluciona, não dá esperança — mas não precisaria fazê-lo. Precisaria, no entanto, encontrar uma forma cênica de levar a platéia a uma reflexão sincera sobre o tema. Para diluir o sombrio excessivo, a estratégia que vemos é a de se apoiar, de leve, no riso, na zombaria. O risco ai é que a zombaria também é uma forma de violência interpessoal, e que mereceria um tratamento mais sério do que aquele recebido.

Enquanto não há esperança no universo de À Flor da Pele, a proposta de Novos Ventos é inteira esperança. A imagem de outono, com o palco coberto de folhas secas, e os noturnos para piano da trilha sonora, poderiam ser imagens tristes. Aqui, não são. Há algo de claramente tropical e quente no outono de Roseli Rodrigues.

Poesia sonora, extremamente melodiosa, a coreografia se agarra nas notas da trilha para impulsionar os corpos, que a princípio rolam pelo chão, como se levados pelo vento, também transformado em metáfora visual pelas calças e vestidos esvoaçantes. A essa imagem se opõem outros figurinos, que trazem os bailarinos quase nus, e em um trio que, oscilando na luz âmbar e azul, dá a impressão de que assistimos a algo que se passa num ambiente fechado — aquário, ou, nesse caso, terrário. Por mais “terra” que vejamos em cena, a coreografia permanece aérea, soprada pelos ventos do título da obra, em levantamentos e carregamentos, com uma bailarina sendo lançada de um bailarino ao outro, em múltiplos giros impulsionados, que tiram suspiros de surpresa e de prazer da platéia.

O que há de especial nessa obra é alívio. Normalmente, essa leveza e essa esperança seriam características de um retrato da primavera, mas aqui, Roseli Rodrigues nos chamou a atenção não para as coisas que já chegaram, mas para aquelas que ainda estão por vir. Um solo, com o bailarino em verde, nos lembra do vigor que permanece, adormecido, no chão debaixo das folhas secas que aguardam ser ventadas — e são, em cena, pelo movimento constante dos bailarinos.

Entre as sequência de duos, acompanhados por chuvas de folhas secas que caem sobre os bailarinos, dois especialmente românticos aparecem em momentos distintos da obra, ambos com os bailarinos em laranja, quase se misturando às folhas. Nesses momentos, os giros, as torções, os levantamentos e as quedas sustentadas, mais que em qualquer outro instante, parecem reproduzir o movimento das folhas secas ao vento, movimento que predomina na obra, que é inteira leveza, inteira brincadeira, e ótima para se assistir, agora que as temperaturas voltam a baixar em São Paulo. Notável solução para a violência da primeira parte do programa.

 

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