Críticas

Shine | Cia Perversos Polimorfos

Shine, da Cia Perversos Polimorfos, transforma o espaço da Casa do Povo com uma iluminação potente, e uma sequência de cenas que trabalham dispositivos já tradicionais da produção atual em dança, a partir de uma investigação pessoal dos intérpretes, mas também da trajetória da Cia, num conjunto ofuscante que é discutido na crítica nova do Da Quarta Parede.

O prédio da Casa do Povo, no centro de São Paulo, pode passar despercebido por quem anda na Rua Três Rios. No entanto, de dentro de suas salas, ladeadas por janelas que deixam entrar as luzes da noite da cidade, parece dominar uma sensação que se desdobra desse aspecto industrial e moderno, que mistura linhas — muitas linhas — retas e curvas,  em combinações que quanto mais são olhadas, mais intrigam. Uma galeria de arte, um espaço de memória, que, mesmo vazio, nos faz olhar em volta e para fora, e descobrir como a cidade se ergue, se mostra e se esconde. Esse espaço, em si poético, acolhe Shine, estreia da Cia. Perversos Polimorfos, dirigida por Ricardo Gali, como parte de seu projeto Retrovisor, que olha para a trajetória da companhia e, mais especificamente nessa obra, dos intérpretes que a formam.

Instalação (pouco) coreográfica, Shine nos coloca em contato com anseios e questionamentos, apresentados numa progressão de cenas que parecem originar de questionamentos pessoais, individuais de cada um dos intérpretes. Nesse esquema, cada cena parece presa a um dos intérpretes-criadores, e seus temas, bastante incertos e nem sempre compreensíveis, abrangem relacionamentos, política, natureza, economia, corpos, e (até) dança. Não há condução, e o próprio programa trata da aleatoriedade e do desencanto que fundamentam a proposta da obra. Para além da inexistência de um enredo, essa é uma característica que se esconde atrás da pretensão de não-significar para além daquilo que se vê — proposta que aparece em muitos momentos da história da dança, desde o clássico e sobretudo nos experimentos da pós-modernidade, mas que é bastante difícil de se desenvolver quando somos colocados em meio a tamanha quantidade de signos, visuais, verbais, sonoros, e de movimentação.

O que junta as partes de Shine é a luz (assinada por Aline Santini), e a forma da disposição do público no espaço, sentado em colchonetes espalhados linearmente pelo chão, formando uma grade, pela qual os intérpretes transitam. Com o andamento da obra, as variações da luz levam, contundentemente, a ambientações meticulosamente programadas, que são completadas pela alteração dos espaços da platéia, feita em intervenções que não têm nenhuma pretensão de se esconder, num uso reconhecidamente contemporâneo da contra-regragem como elemento perceptível da construção cênica, e que não se disfarça, não tenta criar ilusões — diferentemente da luz, que é inteiramente ilusionista e determinante nessa obra.

O efeito resultante desses contrastes é interessante. Há valor igual em olhar os intérpretes e olhar os contra-regras, ou em olhar as luzes, ou em olhar as sombras que se fazem pelo espaço, ou mesmo em olhar como o lado de fora se altera (ou não) por aquilo que ali dentro se faz. Dentro de sua individualidade, cada uma das cenas é intensa, mas, no todo, o conjunto dessas intensidades é um brilho ofuscado e limitado, porque não ultrapassa o território plástico de um ou outro trecho da obra, nem colabora para um todo — como o faz a luz do espetáculo.

O que depreender desses corpos que (falando ou não), parecem nos gritar, constantemente, mas cada um à sua vez, ao longo da longa obra, “este sou eu”, “isto é o que eu penso”, “isto é o que eu vivo”? Como nos encaixamos — enquanto público — nessa apresentação que, de tão íntima, nos coloca ali, no meio dos artistas, e não como observadores distanciados? Talvez a resposta seja que, tal qual as múltiplas partes de Shine, nós não nos encaixamos. Apesar de dividirmos um espaço com os performers, esse espaço não é um espaço comunal: é um espaço deles, onde somos invasores. Entre os colchonetes, eles passam demarcando o território que não é nosso. E quando precisam de mais espaço, somos removidos do caminho. A única interação entre platéia e intérpretes vem em um discurso que fala muito e longamente, num grande exercício teatral, mas que parece programaticamente escapar de dizer algo. Sempre à beira da significação, as frases se cortam, até o publico passar a ser questionado sobre seus rendimentos mensais, de onde se acha um cordão para se pedir dinheiro à platéia, transformando-a em membros de uma associação temporária, que, ficamos então sabendo, precisará eliminar um dos intérpretes da execução da última cena.

À parte algumas cenas de cômico gratuito, recebido entre o riso e o incômodo, o tom geral de Shine é sério e quase sombrio, ainda que não haja certeza do motivo da seriedade. O final, um ato ilusionista que culmina no desaparecimento dos bailarinos, entre as luzes e a fumaça, aumenta a impressão de um show de mágica, a que assistimos prontos para a surpresa, mas sem saber o que acontece, como acontece, ou porquê de fato acontece. Questionamentos interessantes, mas que não parecem programáticos da obra — de fato, fora a luz, pouca coisa parece programada ou dirigida na obra, que enviesa por uma proposta que, dependendo de quem a ela assiste, cai para o tudo vale ou, menos positivamente, para o qualquer coisa vale.

Nesse mesmo caminho se encaixa o título, mas pra ele, parece existir, fora da obra, um desejo de explicação. O texto do programa (em si um grande cartaz da obra) apresenta Shinecomo uma entrada de dicionário, com 8 acepções inventadas, que parecem, mas só de leve, nos revelar um pouco da proposta dessa “não obra” de “partituras cotidianas desencantadas”, desse “depósito coletivo de desabafos” “tentando dar sentido ao abstrato”. Questionável. Dar sentido é algo da ordem de fazer-se entender — não é o questionamento pessoal, mas a capacidade de articular esse questionamento para que um outro o entenda, e, ainda que Shine pulse intensamente com os questionamentos de seus intérpretes, não há na obra direção ou organização suficientes que ajudem a transformação da sensibilidade individual em uma sensibilidade compreensível.

Shine demanda atenção, requer disponibilidade. Se não formos — ou não nos deixarmos ser — seduzidos pelos intérpretes e seus questionamentos — atividade que demanda um certo esforço e bastante disposição do público — a obra pode ser facilmente recoberta e engolida por sua luz e pelo espaço de apresentação — que brilham, intensamente, mas, mais que isso, parecem convidar e cativar o olhar. Mesmo que pré-colocados numa posição meditativa — no espaço inicialmente da penumbra, e com a indicação de que ocupemos os primeiros 20min da obra de olhos fechados — às vezes é difícil focar nos corpos “em busca de um tesão já esquecido”, sobretudo dentro de um ambiente e uma ambientação tão excitantes e estimulantes como os que encontramos, e esperar que uma forma de brilho não seja ofuscada por uma outra.

16114913_1162015697239432_7965089161197871950_n