Críticas

Fados e Outros Afins | Cia Mariana Muniz de Dança e Teatro (XI Mostra do Fomento à Dança de São Paulo)

Coberto de azul, o palco da sala cênica do CRD se transforma em mar. Sobre ele, Mariana Muniz navega, no espaço, no tempo, na música, nas palavras, de Portugal ao Brasil, em “Fados e Outros Afins”. Repleta de poemas, a obra retrata uma “viagem que nunca fiz”, que é declamada pela bailarina e cantada pela trilha sonora, compondo o ambiente onírico desse espaço indeterminado, entre céu e mar, e navegando.

Trabalhando inicialmente com o corpo no chão, desenvolvido em torções expressionistas, demoramos para ver seu rosto. Entre Lusíada e o Desassossego, o retrato que se compõe é do mar e suas angústias. Salgado, perigoso, e destrutivo — mas talvez também um pouco reconfortante, confrontando a rigidez inicial do corpo com cenas de acalanto, de carinho, que se espalham pela obra, especialmente quando a intérprete pega um esqueleto dourado (do pescoço à bacia), e o manipula como se fosse um barco, numa curiosa imagem de um busto de proa, que navega pelo espaço.

É trabalhosa a articulação de fala e movimento, e muitos bailarinos acabam deixando a voz desmerecer trabalhos corporais mais interessantes. Esse não é o caso com Mariana Muniz, que com uma voz potente mostra a eficiente integração do texto em sua pesquisa cênica. Porém, do outro lado do espectro, com a duração do espetáculo, a voz, colocada entre tantos outros elementos, acaba perdendo força e fôlego.

De certa forma, há uma grande divisão no espetáculo, que faz questão de completar uma jornada de Portugal ao Brasil e, aqui chegando, fica um pouco mais confusa. A influência dos fados portugueses na cultura brasileira pode ser aludida, mas sua construção cênica ainda é tênue, perto da expressividade marítima da primeira parte. O resultado é que parecemos ver dois espetáculos, que poderiam ser segmentados já na construção do título: na primeira metade “Fados”, na segunda “Outros Afins”.

Ambas as partes têm interesse e potência, mas a conversa entre elas parece mais a de um procedimento do que a de uma composição: temos o cenário constante e a brilhante iluminação de Aline Santini, que fazem o espaço se perder ao fundo da cena, como se se estendesse para algum outro lugar; temos a estrutura musical e poética reiterada; mas há algo que não dialoga continuamente entre as partes, como se fossem duas instalações de um mesmo projeto, mas não necessariamente elementos do mesmo espetáculo.

Constrói-se uma plataforma e uma proposta densas, mas ficamos à expectativa de um plano de viagem que Muniz esclarece apenas após o final da obra, explicando suas simbologias e ideias, mas cuja percepção durante a mesma é sutil, e se organiza entre a estranheza e o familiar — semelhantemente aos fados e à sonoridade do português de Portugal, que ora parece próximo, ora distinto de nossa língua.

Também dentro do entendimento da estrutura proposta, é uma pena que Muniz dance e circule quase que indistintamente entre as partes do cenário que são “mar” e aquelas que são “terra”, assim desconstruindo a cuidadosa elaboração visual da cena. O que é inegavelmente trabalhado, pela força e expressividade da intérprete é o sentimento de melancolia, de saudade, e de incerteza — dos poemas, da jornada, e da trilha sonora. Não exatamente uma tristeza, mas algo com um mistério, “como uma ideia triste numa hora de alegria”: verso do “Livro do Desassossego”, que aparece e parece dominar essa viagem.

 

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Fados e outros Afins foto de Cláudio Gimenez net