Críticas

Um “Lago” que lava

O Balé Teatro Guaíra faz uma releitura leve de um dos maiores clássicos do balé. Entre novos arquétipos e representações, quanto da obra pode ser alterado ainda dentro de sua essência?

O que torna uma obra um clássico é — pretensamente — sua atemporalidade: por motivos diversos, são obras que resistem ao teste do tempo. Seus temas, sua qualidade, sua técnica, lidam com representações maiores do que os elementos literalmente colocados em cena, e tratam da sociedade, dos indivíduos, de seus arquétipos. Mas, com o tempo, sociedade e indivíduos mudam, arquétipos precisam ser atualizados, e representações precisam ser revistas para continuarem levando àquilo que temos em comum.

Revisitar os clássicos não é uma proposta nova, mas é uma missão. Trabalho delicado, porque demanda simultaneamente um bom tanto de renovação, e outro tanto de continuidade. Mexer em obras como “O Lago dos Cisnes” é tarefa arriscada. Existe tanta mística em torno desse balé que o mesmo público por vezes desejoso da atualização é receoso de perder as âncoras que reconhecia na obra.

Uma estratégia recorrente é escolher alguns pontos marcantes para manter semelhantes a versões reconhecidas, e alterar outros tantos. No “Lago” do Balé Teatro Guaíra, o que vemos em cena é uma âncora de princípios: não necessariamente com os elementos da história e da forma como ela tem sido refeita ao longo do tempo, mas sobretudo com a ideia de que o que torna uma obra clássica é sua representação arquetípica — de padrões de comportamento e de formas de ser.

O coreógrafo do trabalho, Luiz Fernando Bongiovanni, não é estranho a possibilidade de se repensar os clássicos. Sua carreia passa pelo Culberg Ballet, casa de algumas das principais remontagens contemporâneas de obras clássicas, feitas por Mats Ek, e por suas próprias incursões nesse ramo, como em seu “Giselles”, obra subestimada do repertório do Balé da Cidade de São Paulo, que até hoje carece de seu justo reconhecimento, mas também seus “Romeu e Julieta” e “Carmem”, feitas para o Guaíra.

A cada obra, a estratégia de releitura de Bongiovanni é diferente. Aqui, a estrutura arquetípica é o que parece mais intenso: mantém-se a ideia de que o clássico é uma representação de arquétipos, mas mudam-se alguns dos arquétipos representados. Trata-se de uma visão plasticizada da situação que a história retrata, ampliada em metáfora corporal e coreográfica de algo que é mais abrangente do que o enredo — estritamente.

Declaradamente decidida a tratar de maturidade, de crescimento, a versão do Guaíra pesa a mão no personagem do Príncipe Sigfried, que é realmente fundamental para a história, por ser um dos responsáveis pelos conflitos que encaminham a ação da obra, mas não é nela um personagem principal. Aqui, uma das principais reflexões colocadas em cena é uma questão de controle social sobre o amadurecimento, que se reflete na forma como o príncipe, em cena em meio a corte, é frequentemente dançado pelos nobres e bufões.

Essa imagem se replica na rainha-mãe, que tem um papel ativo nas determinações da vida e do amadurecimento de Sigfried, e que aqui já surge em cena como uma outra representação de controle: ela entra com uma grande saia, de onde saem os nobres da corte — interessante representação do poder da realeza.

Esse “Lago” se apoia constantemente na comicidade para a visão da sociedade que representa, cuja construção insiste no humor. O humor inclusive aparece em um dos desvios da trilha original, em que o Coda do Pas de Deux do Cisne Negro aparece no primeiro ato para um momento cômico.

Isso é algo da irreverência do coreógrafo, que não tem medo de mexer em alguns dos eixos mais marcantes desse balé. Os Pequenos Cisnes, por exemplo, não são mulheres, e sua dança nem mesmo é em linha. Esse tipo de alteração não afeta a perspectiva do público sobre a obra, assim funcionando para mostrar que frequentemente esperamos certas coisas do “Lago”, não porque sejam essenciais, mas porque fazem parte de um imaginário sobre ele.

Como de costume, o segundo ato serve como o melhor exemplo da possibilidade de criação de cada coreógrafo que enfrenta o “Lago”. Aqui, um lago de luz, com cisnes em body-suits, tanto homens quanto mulheres, guarda a musicalidade e os acentos pra dentro e bem marcados do trabalho de Bongiovanni.

Uma das dificuldade aparece no tom de infância que é insistente ao longo da obra, e talvez seja um efeito da decisão de retratar a rainha proeminentemente como uma mãe superprotetora. No geral, um aspecto de teatro juvenil, deixa todos os personagem reduzidos a sua versão-criança. E a a dinâmica das relações é frequentemente a do ciúme, da vontade, assim reduzindo-se a grande história de amor e ganância a uma forma de jogo, talvez leve demais.

A questão da dramaticidade e sua falta culminam no terceiro ato e na promessa de amor quebrada, que só de repente e no quarto ato, parece de alguma forma afetar o príncipe. Talvez seja um problema da pantomima, em que esse balé tradicionalmente se apoia para poder contar sua história. Não que o “Lago” seja um balé de pantomima, inclusive é uma obra com pouco disso, mas esse é um pouco importante e que organiza a ação e ajuda na criação do drama.

Aqui, sem esse peso do drama, acabamos confrontados com um ambiente um tanto quanto mais leve, e excessivamente felizinho mesmo em seu final trágico, que não se resolve, não se explica, e, mesmo bonito, é por demais leve, e depende dos efeitos técnicos — como uma chuva em cena que limpa os cisnes do feitiço — para causar o efeito dramático e de deslumbre.

É eficiente, mas não é justo com a obra. Queremos terminar o “Lago” boquiabertos, mas não porque está chovendo em cena, e sim porque a interpretação dessa história trágica nos leve para esse lugar que também poderia ser lido como um arquétipo: o das artes da cena como catárticas. Mas catarse não é só deslumbre. Ela é pesada, dolorosa, e construída com esforço em cada fio da trama do trágico. Esse é um “Lago” interessante, um “Lago” bonito. Mas ele nos lava e escorre, sem nos afogar.