Críticas

onqotô | Grupo Corpo

No princípio havia o caos. Sistemático e sistêmico, o caos do Corpo é simétrico quando sobe a cortina de Onqotô. A metáfora visual é de partículas soltas num buraco negro, universo recortado – infinito de possibilidades – em que se transforma o palco. Aos poucos, a coreografia de Pederneiras passa a entremear simétrico e caótico, dentro de uma forte musicalidade percutida também nos pés, transpassada nos corpos em cena. Movimento e fluxo, ruptura e padronização: Onqotô se constrói desde a primeira cena através de metáforas da criação, não num sentido religioso, mas num sentido cosmogônico. As partículas que se chocam, uma molécula que diz sim à outra.

A obra, estreada em 2005 na comemoração dos 30 anos do Grupo Corpo, guarda ainda seu lugar de destaque na produção nacional, e fez parte da Temporada de Dança 2014 do Teatro Alfa num programa junto de Triz, estreado em 2013. Criação afinada no acervo de uma companhia que, dentro de um histórico notável de realizações, mantém esse marco como um auge insuperado. Vêm outras obras, outras tantas são revisitadas, e Onqotô continua, quase uma década depois, com o impacto cru e o apelo estético de uma produção que tem seu tempo, tem sua história, mas poderia ser mantida em repertório, reapresentada continuamente como estandarte das possibilidades da dança do grupo.

Visceral, a exploração do tema da criação centra o homem e o corpo em sua experiência deslumbrada do universo. Não há uma linearidade, mas há uma impressão cíclica. Fertilidade, sexo, nascimento, morte, paixões. A indagação proposta não é a de uma história, mas a de pulsões: o que move o universo. E ai, mais uma vez, aparece a discussão do indivíduo-corpo, bicho da terra, tão pequeno frente à imensidão que encontra. Essa solução carrega o acerto da equipe, que consegue colocar em diálogo a proposta temática e a proposta coreográfica. A exploração da movimentação, estilizada já no trabalho de Pederneiras, contribui para dar um sotaque à discussão.

A questão do sotaque, do regionalismo, também pode ser pontuada como relevante na trajetória do Corpo – com a pesquisa do contratempo brasileiro, das movimentações de manifestações da cultura corporal e da dança do Brasil, além do trabalho do coreógrafo com os eixos do corpo, que há muito são apontados como características da movimentação de Pederneiras – e nesse espetáculo, é retomada desde a origem do título que sugere um dialeto, o mineirês – a aglutinação de “onde é que eu estou” em onqotô. Essa familiaridade (do termo, quase que falado à mesa) aproxima espectadores e obra: somos colocados nessa situação de intimidade com o que é apresentado e, novamente, o universo e a criação apresentadas pelo Corpo chamam o indivíduo à participação.

Porém, a atenção ao indivíduo – tanto no tema como na mencionada questão da participação – não vem carregada de um subtexto de pessoalidade. Pelo contrário, aqui, colocar em cena o indivíduo/humano é destacar a importância do coletivo, da experiência comum. Nesse esquema, visualmente os figurinos colaboram para massificar o conjunto, diminuir diferenças entre os bailarinos, o que se junta à proposta cenográfica, que que encerra o fundo palco em faixas pretas, que cercam o espaço da cena e determinam a interação dos bailarinos com o dentro e o fora. A iluminação trabalha em eixos alternados, em momentos colocando sob uma fonte geral a visão que podemos ter da cena, e em outros direcionando pontualmente a visão do público para um ou outro bailarino.

Na soma, tudo insiste na crueza: o palco como uma cena quase nua, a iluminação diversas vezes no impessoal, o figurino que destaca sobretudo as formas dos corpos, os músculos, e inclui o nú de tão pequeno. Esse vazio contrasta com o preenchimento coreográfico e musical. A trilha sonora de Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, que conta com versões musicadas de poemas de Camões e Gregório de Matos e com uma referência a Nelson Rodrigues sobre uma partida de futebol (“começada quarenta minutos antes do nada”), discute aspectos que fixam liricamente, a experiência humana como centro da compreensão do Universo, a partir de sua perplexidade frente a ele.

É uma questão de tamanho. O tanto do Universo e o tão pouco de cada um. As potências humanas, as pulsões que dão continuidade e movimentam a criação. Contagiante não por ser associativa – a movimentação aqui trabalha muito pouco no mimético, no referencial – mas por ser construída no vigor das possibilidades, e do que parecem impossibilidades do corpo, até serem realizadas pelos bailarinos. Ação e inação são colocadas em cheque, das pontas dos pés à cabeça, passando, sobretudo, pela bacia.

Em 2005 Onqotô comemorou o aniversário do Corpo com aquilo que o Corpo tem de melhor: interação artística. Em 2014, quase uma década depois, o peso das muitas mãos que constroem essas criações e que dão forma e continuidade à companhia, ainda aparece como uma das realizações mais acertadas do grupo. Os elementos da obra se complementam, raras vezes se chocam, mostram uma unidade dentro do caos criativo, semelhante à unidade dentro do caos da criação: forma e tema se completam. Continuam provocando, encantando e questionando.

Frente ao infindo, costas contra o planeta, o pesar do mundo sobre si mesmo, um fraco humano assiste ao desvelado lado,lotado de pulsão demais: um eco sem fim contra um bicho da terra tão pequeno. Onqotô? Quemqosô? Ponqovô? É só isso?

– e precisaria de mais?

onqoto