Críticas

O Quebra Nozes (30 Anos) | Cisne Negro Cia de Dança

Das muitas tradições que o ballet estabeleceu ao longo de sua história, uma das mais levadas a sério atualmente é o ballet natalino O Quebra Nozes, apresentado pela primeira vez em Dezembro de 1892, com música de Tchaikovsky e coreografia de Marius Petipa e Lev Ivanov. A sua tradição não se estabeleceu nesse momento: foi quase meio século depois que as remontagens de versões completas do ballet aproveitaram o clima mais empreendedor do final de ano, criando uma sensação comercial, em números e quantidades que assustam por suas dimensões exageradas.

O Quebra Nozes é apresentado e refeito, remontado, adaptado e recoreografado por centenas de companhias no mundo, cada lugar estabelecendo as suas tradições de apresentação regular: todo ano chega o natal, e, na dança, sabemos que é a temporada porque há um Quebra Nozes sendo apresentado. Nos Estados Unidos, em 2011 foram contabilizadas 751 versões do ballet em pouco mais de 120 cidades. A versão que introduziu O Quebra Nozes à cultura estadunidense foi a de William Christensen para o San Francisco Ballet em 1944, e a companhia continua apresentando temporadas anuais de Quebra Nozes, apesar de não manter a primeira versão, sendo, então, talvez a versão mais tradicional, a de George Balanchine para o New York City Ballet, que é apresentada continuamente desde 1954. Na França, a versão de Rudolf Nureyev de 1985 continua sendo apresentada pelo Ballet de L’Opéra de Paris.

No Brasil, a tradição é mantida em dois principais locais. O primeiro, o Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ainda apresenta a versão de Dalal Archal criada em 1981, porém não regularmente: nos 32 anos desde a estreia, foram apresentadas treze temporadas, em anos vários, atualmente em sequência desde 2010. O segundo – e maior – local de manutenção da tradição do Quebra Nozes é São Paulo, com a versão de 1983 da Cisne Negro Cia de Dança, apresentada ano após ano, desde então, e que completou 30 anos nessa temporada de 2013, apresentada entre 12 e 22 de Dezembro no Teatro Alfa. A empreitada é enorme. Não apenas pelos mais de 120 artistas envolvidos nesse espetáculo, mas, sobretudo, pela constância da manutenção da obra, sua incrível quantidade de récitas a cada temporada, e sua recepção pelo público e crítica – a segunda temporada do Quebra recebeu o APCA de Melhor Espetáculo de Dança, e a versão de 2012 recebeu o Prêmio Governador do Estado de Melhor Espetáculo de Dança.

A direção artística da versão de 2013 é assinada por Hulda e Danny Bittencourt, sem créditos de coreografia, o que atenta para um dos fenômenos mais relevantes ligados ao Quebra e aos Ballets de Repertório como um todo: a consideração da existência de um núcleo no espetáculo que o identifique como O Quebra Nozes, numa interpretação que muitas vezes ultrapassa as barreiras das pessoalidades dos criadores, passando a ser menos importante quem faz e quem fez, e muito mais primordial aquilo que é feito, a transmissão dessa história, desse conteúdo, que entra, assim, para o domínio do popular, nas fronteiras da tradição (nesse caso não tradição oral, mas tradição) do corpo-a-corpo, daqueles que fizeram e continuam fazendo, transmitindo, aprendendo, retransmitindo, modificando e conservando essa obra.

Curioso que a tradição tenha se enraizado em São Paulo e na Cisne Negro. Curioso porque a Dança em São Paulo já foi fundada sob a égide do Moderno, e a Cisne é uma das companhias que trabalha nesse desdobramento – linhagem moderna e contemporânea da dança, como se observa pelo vasto e interessante repertório formado desde sua fundação, e que conta com numerosos criadores e criações relevantes da dança brasileira contemporânea, além desse caso sui generisde manutenção de um clássico.

A companhia contrata diversos bailarinos para formar o elenco do Quebra Nozes, para além dos bailarinos regulares da própria Cisne, e traz convidados de renome internacional para os papeis principais. Esse ano, as tradições carioca e paulistana se misturaram, com a convidada Márcia Jaqueline, 1ª Bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, interpretando a fada açucarada na primeira metade da temporada. Esse empréstimo e adicional de elenco parecem imprescindíveis para a concretização do Quebra, não apenas pela demanda numérica do espetáculo frente ao elenco da Cisne, mas pela questão da especialização. Ao notar a formação e a dedicação ao Contemporâneo da Cia, aumenta-se o desafio da montagem anual do Quebra. Esses adicionais são formas de balancear aquilo que está pronto nos bailarinos da Cisne, com a inclusão de corpos que possam ter sido mais especificamente dedicados à formação e treino em balé clássico.

O que mais agrada, criticamente, na obra é a questão de seus indivíduos. Ao olhar a ficha técnica e elenco, vemos o predomínio absoluto de brasileiros, mesmo que haja convidados estrangeiros. E é nesse ponto que a Cisne e a tradição do seu Quebra se articulam com São Paulo e a tradição paulistana da criação, produção e descoberta de uma dança que seja sua, e que, nesse espetáculo, ultrapassa os limites do moderno e contemporâneo, mostrando que São Paulo também pode fazer dança clássica e pode fazê-lo com propriedade. Certamente, ajuda a escolha dessa obra, que se liga a outra tradição – tal qual o clássico – importada para o Brasil (o natal), mas – tal qual o clássico – bem recebida, bem aceita e bem enraizada entre os brasileiros, como demonstra o grande sucesso dos 30 anos de Quebra Nozes da Cisne Negro.