Críticas

Dias melhores por vir

A Primavera do Grupo Corpo é leve, macia, feita pra não desagradar, e carrega boas surpresas, junto com a esperança de que dias melhores estão por vir.

O Grupo Corpo é uma companhia atrevida, e recompensada por seus atrevimentos. A confiança de quem tem décadas de trabalho bom, bem recebido, e de sucesso, ajuda até a defender propostas que, em princípio, levantam uma sobrancelha, como foi o caso do anúncio da trilha sonora do Palavra Cantada para a nova coreografia, Primavera. O duo de música experimental para crianças é extremamente reconhecido pelo seu projeto, mas foi difícil desviar de uma suspeita inicial de que o resultado cairia num “Grupo Corpo Só Para Baixinhos”. Não é o caso. A decisão por fazer uma obra para adultos, e combinada num programa com uma obra da envergadura de Gira ajuda a sustentar essa proposta, que vem carregada de esperança, doçura e calmaria.

São esses atributos que permanecem na trilha sonora, da qual o Palavra Cantada removeu todas as letras, adicionando instrumentos, vocais, e arranjos nos playbacks originais de seu vasto repertório. O efeito é complexo, e uma de suas camadas, preciso dizer, me escapa completamente: a minha idade não bate com a do sucesso do Palavra Cantada, de forma que a trilha, ainda que eu saiba ser feita de canções já populares, não me traz nenhuma memória. Talvez a referência seja familiar pro público do Corpo que tenha filhos jovens, mas o efeito que esse reconhecimento pode trazer pra obra eu deixo pra outros discutirem.

É na segunda metade da trilha, quando entra um tanto de percussão em um conjunto masculino, que vem um pouco mais de substância. Em alguns outros momentos, a música, ainda que interessante e gostosa, é macia demais. A escolha, no geral da obra, parece favorecer esse sentimento brando, uma felicidade morna, que evita contrastes, que evita o drástico, o intenso, o temperado.

Combina com a ocasião em que surge a ideia, bem no final de 2020. Era exatamente essa a cara da dança daquele momento: tudo o que queríamos era tranquilidade, calmaria, maciez. Evitar arroubos, surpresas, tensões, e pesos. Quase um ano depois, a energia da segunda obra da noite, Gira, continua movendo mais — mas esse é um páreo muito difícil, são poucos os trabalhos que funcionam no nível de energia de Gira. Colocadas juntas, a combinação improvável surpreendentemente funciona. Primavera te diz que dias melhores virão, e Gira convoca energia pra chegada de coisas boas.

Primavera parece ser sobre sequência. Aquilo que vem depois, o que segue, o rastro. O rastro aparece na estrutura coreográfica, mas também na cenografia, criada por duas câmeras na frente do palco que captam em tempo real a dança dos bailarinos, projetada num telão ao fundo, com variações de aproximação, e recurso de congelar a imagem. O efeito cria uma telepresença simultânea, retoma o familiar atraso das imagens em reuniões virtuais, os problemas de conexão, e outras tantas coisas desse momento atual.

Mas faz isso tudo com extrema leveza, que parece ser o ponto central desse trabalho. Não há risco de queimar a boca: a Primavera do Corpo vem sem os estouros da Sagração de outras primaveras, ela é toda morna, sem sacrifício e sem risco de contra-indicação. É feita pra não desagradar, e esse aviso vem estampado — em algumas cenas — no rosto dos bailarinos, sorrindo, mas nem sempre convincentes: o sorriso fácil é realmente uma armadilha no palco.

A estrutura da obra faz múltiplas cenas, um tanto separadas, quase independentes. Essa não é uma forma nova pro Corpo, mas funciona sobretudo enquanto herança do sistema de produção e trabalho durante a pandemia — o próprio Corpo ficou meses afastado dos palcos, operando por teletrabalho, mas conseguiu manter toda sua estrutura através desses tempos difíceis, que incluíram perdas de patrocinadores.

O trabalho do coreógrafo Rodrigo Pederneiras continua extremamente musical, e de bom gosto, duas marcas absolutas suas. Os destaques da sua coreografia estão nos poucos duos da obra, que têm o mesmo gosto da Primavera, de que dias melhores estão chegando. Os apoios corpo o corpo recuperam a esperança do toque, do estar junto, do contar com alguém: elementos que marcaram os últimos anos, e marcam também essa nossa transição para alguns retornos de proximidades.

Entre as melhores cenas da obra, o duo final, extremamente calmo, doce, parece de fato marcar a transição de um inverno gelado pra uma nova primavera. Essa cena é mais uma das ocasiões pra se deslumbrar com a qualidade expressiva de Mariana do Rosário. Cada passagem sua pelo palco, vestida de amarelo, ilumina a Primavera. Seu primeiro solo já faz um contraponto à cara de paisagem, ao sorriso fácil, e faz a gente levar essa esperança mais a sério. Esses são os dias melhores que esperamos. Eles são leves, menos preocupados, e menos incertos, mas, tal qual sua dança, são destemidos, atrevidos, energéticos, sinceros, e deliciosos. Numa companhia de grandes coreografias para grandes intérpretes, faz sentido que a esperada Primavera, o melhor que está por vir, venha no movimento, venha no corpo de uma bailarina habituada da casa.

O saldo é positivo. É leve, é fácil, é pra ser gostado. Não tem riscos de provocar ou de incomodar: o Corpo olha pra esse momento já tão desafiador, e nos propõe como resposta um tanto de calma, de doçura sem exageros, e que vem acompanhada de algumas boas surpresas, em movimento e, notavelmente, em expressividade. Essa é a Primavera que eles querem chamar, esses são os dias melhores por vir. Aguardamos ansiosos.

Primavera

Coreografia: Rodrigo Pederneiras

Música: Palavra Cantada

Cenografia: Paulo Pederneiras

Figurinos: Freusa Zechmeister

Iluminação: Paulo Pederneiras e Gabriel Pederneiras

Elenco: Ágatha Faro, Bianca Victal, Dayanne Amaral, Débora Roots, Edésio Nunes, Edson Hayzer, Elias Bouza, Filipe Bruschi, Helbert Pimenta, Janaina Castro, Jonathan de Paula, Karen Rangel, Luan Batista, Lucas Saraiva, Malu Figueirôa, Mariana do Rosário, Rafael Bittar, Rafaela Fernandes, Silvia Gaspar, Williene Sampaio, Yasmin Almeida

Fotos: José Luiz Pederneiras