A força que move
Em Motriz o balé da Cidade de São Paulo mostra sua(s) força(s): de elenco, de direção, de criação
A nova criação de Cassi Abranches para o Balé da Cidade de São Paulo, há um ano sob sua direção artística, é sobre força. Vestido de macacões azuis, na primeira cena cobertos por macacões plásticos, o elenco do BCSP ocupa o palco como se ele fosse chão de fábrica. E é a força bruta, repetitiva, do movimento do trabalho, que os faz dançar como pistões em um motor nessa cena de abertura.
Embala esse processo a trilha sonora original criada pelo Baianasystem: um desafio de sonoridades e propostas, um quebra-cabeça a coreografar, que em si já carrega a multiplicidade dos sentidos dessa força, que vem da máquina, do motor, da engrenagem, mas também do músculo, do corpo, do coletivo, da natureza, do outro, da companhia.
É um trabalho que agrada: é dança feita pra se gostar de ver — marca importante e que faz parte da história e da assinatura de Abranches. Mas é dança que não passa sem provocação. Ela não discute só formas boas de força. O repetitivo, o desgastante, o abusivo, o violento, ganham lugar e complexidade, como assunto e como pesquisa coreográfica. Criam tons que colocam a obra numa percepção mais ampla de seu assunto, que deleita, mas também faz pensar.
Em Motriz encontramos a delicada sofisticação coreográfica de Abranches, que nos mostra estruturas de movimento provocativas, e tensionadas. É coreografia de desafio pra execução, mas é desafio que dá gosto: gosto que se percebe no elenco em cena, e na plateia. A obra nos deixa alguns bons trechos pra memória, depois de sair do teatro. Contagia com um jeito de jogar o braço, uma forma de usar o corpo pra tomar impulso, um apoio inesperado nas pernas, um giro, uma inversão brusca de direção às vezes ainda no ar. É trabalho pra poucos, e o elenco do BCSP está em casa com essa trabalhosa proposta.
No entanto, é fora de casa que Motriz acontece, em estreia na importante Temporada de Dança do Teatro Alfa. A obra só foi possibilitada, inclusive, pela Temporada do Alfa, produzida com verba externa ao Theatro Municipal, e pela assistente de Abranches, Patrícia Galvão, renomada produtora, e também ex-bailarina do BCSP. O processo, e o sucesso desse trabalho, testemunham a importância da independência do Balé da Cidade e de suas direções.
Originalmente criada numa posição submissa ao Theatro Municipal, essa companhia — que se tornou uma das maiores do país — teve lutas grandes para garantir sua independência e sua operação. A fragilidade da gestão do Theatro Municipal, em franca crise desde 2013, ameaça a todos os seus corpos estáveis. E não menos a dança, sempre a um passo de ser subjugada por uma direção mal gerida da casa.
Contornar à ingerência, sobreviver à má administração, é um ato de resistência. Fazer isso enquanto produz como há anos a companhia não produzia, é um ato de força. Um ato de enfrentamento. Uma insistência em voltar a ficar de pé e dançar, mesmo quando diversas forças externas te batem e tentam te derrubar. Não gratuita, essa imagem fica marcada em Motriz, numa cena em que uma única bailarina vestida de laranja é atravessada pela multidão de macacões azuis que a afetam e a derrubam.
Nem só de enfrentamento se faz a força dessa Motriz. Permeada pelo sensível, pelo lírico, Motriz encontra poesia nas engrenagens. Coloca os corpos em relação, e como parte do todo, no grupo e no mundo. Presos por elásticos, dois bailarinos desafiam forças, impulsos, gravidade. Experimentam a tensão que prende, que une, que junta. Ao som de gotas de água, um solo feminino recupera a força da natureza. A movimentação, que volta num conjunto feminino, fala de apoio, de resistência, de leveza. Esse solo, coreografado pra ser lembrado, entrega a Grécia Catarina, bailarina de destaque na companhia há alguns anos, uma oportunidade coreográfica realmente brilhante. É o tipo de performance que faz carreiras. E temos o prazer de acompanhá-la nesse momento tão forte.
Motriz encerra um ano de muito sucesso no Balé da Cidade. Sucesso tão grande e tão perceptível que é fácil não prestar atenção nos atravessamentos e problemas que afetam essa grande companhia. É fácil, por exemplo, esquecer que o BCSP continua sem casa. Passaram o ano todo muito bem recebidos na Company Dance Center, espaço realmente ímpar para a dança, gentilmente emprestado, num acordo articulado pela diretoria do Balé, e que tem nos livrado de pensar na (falta de) responsabilidade, do Theatro Municipal e da Fundação Theatro Municipal, com uma obra já há uma década atrasada, e um projeto já há quase 55 anos em débito com toda a dança de São Paulo.
Ao continuar dançando, produzindo obras de reconhecimento, de público e de crítica, voltando a receber convites para importantes eventos nacionais e estrangeiros, o Balé da Cidade de São Paulo finalmente vai recuperando seu prumo. Não sem esforços, não sem dificuldades, não sem atravessamentos. Mas continua. E, com Motriz, continua mostrando a força que o move.
Motriz, ficha técnica
concepção e coreografia CASSI ABRANCHES
trilha sonora original BAIANASYSTEM
desenho de luz GABRIEL PEDERNEIRAS
figurino JANAINA CASTRO
assistente de figurino BRUNO VELOSO
ensaiadoras CAROLINA FRANCO e ROBERTA BOTTA
elenco ANA BEATRIZ NUNES, ARIANY DÂMASO, BRUNO GREGÓRIO, BRUNO RODRIGUES, FABIANA IKEHARA, GRÉCIA CATARINA, HARRY GAVLAR, ISABELA MAYLART, JESSICA FADUL, LEONARDO SILVEIRA, LUIZ CREPALDI, LUIZ OLIVEIRA,
MARCEL ANSELMÉ, MÁRCIO FILHO, MARINA GIUNTI, REBECA FERREIRA, RENATA BARDAZZI, UÁTILA COUTINHO, VICTOR HUGO VILA NOVA e YASSER DÍAZ
fotos SILVIA MACHADO e STIG DE LAVOR