Críticas

Jardim Noturno | Companhia de Dança Siameses

Na calada da noite, pesa sobre nós a ação do tempo. Um jardim cresce, quase como uma mata fechada, e nele vislumbramos a experiência pessoal de crescimento, em constante diálogo com essa inevitável ação do tempo. Jardim Noturno, da Companhia de Dança Siameses, é criticada no Da Quarta Parede.

No Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo, a Companhia de Dança Siameses apresenta Jardim Noturno, obra criada originalmente em 2005 e refeita em 2010, na versão que segue no repertório, agora dançada por um novo elenco da companhia. Por trás de sua criação, estão várias das propostas que seguirão presentes no trabalho do coreógrafo, como as questões da formação e da transformação dos indivíduos, e do tempo.

No jardim de Maurício de Oliveira, crescem palavras, mais do que pessoas ou vegetais. De um vazio do início da obra brotam palavras, e seu crescimento desenfreado é o processo que domina a cena dessa obra. Retratando esse andamento, a luz de Jardim Noturno mostra um ambiente que está o tempo todo perceptível, mas que vai sendo progressivamente descoberto e desvendado. Esse ambiente trabalha com a materialidade da caixa preta do teatro e do palco para construir uma impressão inicial de vazio, que vemos recortado em branco por pequenas placas — como se fossem rodapés — que demarcam os limites de um espaço dentro do todo da cena. E esse espaço é o jardim.

Invadem o jardim três criaturas, em movimentos de pulsações que sugerem um germinar. Quase em silêncio, a obra é ambientada por um conjunto bem articulado de ruídos, que marcam a passagem do tempo, e a inserção desse espaço no mundo exterior a ele. Mas não se trata de silêncio, na verdade: há sonoridades várias, e é o sucesso do seu conjunto com o todo da peça que faz com que elas caracterizem o jardim, sem dominá-lo, com uma aura de silêncio noturno, vez ou outra rompido por um som inesperado, pra depois voltar a seu lugar habitual.

Feita essa primeira apresentação, se inicia um processo cênico em que o espaço se transforma em matéria, e as muitas placas brancas que formam esse rodapé contornando o jardim são manipuladas pelos bailarinos. Elas serão amontoadas, empilhadas, se transformarão em jogos de construção, e nos revelarão que escondem um texto, não exatamente lógico, mas sensível dentro de sua poesia. São palavras e pontuações, sozinhas e em pequenos grupos, que passam a ser manipuladas em cena pelos bailarinos. A um passo, essas placas delimitam os espaços, e a outro, ainda que vejamos a mesma quantidade de bailarinos e de placas todo o tempo, há um efeito de crescimento quase sufocante: nesse jardim, as coisas crescem desenfreadamente, se esbarram, convivem, compartilham, competem, se apoiam, mudam de rumo, caem, começam a crescer por outras caminhos, e assim por diante.

A dificuldade com Jardim Noturno é que as palavras roubam a cena, e se torna fácil ignorar dois bailarinos dançando para assistir a essa proliferação causada pelo terceiro; como resultado, o tema da obra parece mais calcado sobre a cenografia e sua intervenção do que sobre a movimentação em si. Esta, estruturada no micro das articulações do corpo, e das articulações entre os corpos, trabalhadas com sutileza e delicadeza, se opõe ao vigor quase violento da manipulação que se dá com as palavras. É um esforço e insistência de crescimento, como uma planta que vai achar um caminho para seguir.

Antes que as palavras dominem o espaço, há um duo de força que escapa da predominância mais rasteira da obra e navega por planos mais altos, com carregamentos leves nos quais, além do prazer da movimentação, encontramos um prazer inesperado na respiração dos bailarinos, numa qualidade e sutileza rara entre várias corografias atuais, tão marcadas por sons quase convulsivos de respiração. Nesse duo, vemos um crescimento orgânico diferente do resto da obra: aqui há algo que floresce, que frutifica, enquanto a maior parte da obra é marcada, sobretudo desse momento do duo para o final, pelo crescimento desenfreado, que também é orgânico — e talvez seja até mais natural que o outro — mas que cria matas cerradas, se fechando em torno do público, numa sensação de sermos engolidos pela vertigem desse crescimento.

É uma pena que as palavras não se articulem com os bailarinos. Parecem um acidente, parecem aleatórias. Um bailarino pega uma das placas e a mostra com um olhar intenso para os outros dois. Nada muda. Mostra outra, e tudo prossegue como era. Se por um lado é muito interessante que seja tão difícil intervir na continuidade dos bailarinos, por outro, com as palavras marcadas nas placas, ficamos à caça de mensagens. Seria um texto? Há algo nos sendo dito pelas palavras e suas combinações? Seria um poema acidental? O exercício em cena lembra formas de poesia concreta e digital, e uma palavra leva a outra, porém, sem uma precisão poética e um cuidado construtivo. Aqui, palavra esbarra em palavra, e o emaranhado de mato encobre entendimentos.

Talvez o jardim seja um jardim abandonado. Talvez seja um jardim sem jardineiro. E, por isso, talvez as palavras se percam em meio à vegetação que cresce e que tudo encobre. Talvez em algum momento no passado elas fizessem sentido. Talvez, com cuidado e muito trabalho pudéssemos adentrar nesse jardim e entender tudo aquilo que nele existe. Mas, mais que as possibilidades e dúvidas, a indagação que o Jardim Noturno deixa para o público é do que fazemos e deixamos de fazer, da forma como (nos) cuidamos, como (nos) cultivamos e como crescemos. Tal qual as plantas crescendo, a noite também tem seu tempo próprio — misterioso, quase secreto — e todo tempo tem uma força de ação, inevitável, sobre nós.

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