Depois das Vanguardas
A referência à Semana de Arte Moderna de 1922 é lida pelo Stagium como um estudo de estética. Não uma homenagem a indivíduos, mas ao pensamento artístico das vanguardas, que moldou e ainda molda o mundo.
Ano passado, na ocasião da comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o Ballet Stagium remontou sua obra A Semana, que, há uma década, celebrava os 90 anos do grande evento que se registrou como um marco da arte no Brasil. Em 2023, em temporada no Teatro J. Safra, A Semana volta a seu encontro com o público.
A homenagem — de certa forma antecipada mas ao mesmo tempo tardia — enfim vem em boa hora: ano passado, sobrecarregados das menções a essa data, talvez fosse mais difícil encontrá-la com olhos frescos. Agora, ela já consegue organizar o interesse que merece.
A grande diferença desta para outras menções à Semana de 22 a que assistimos é uma questão de propriedade: o Stagium coreografa vanguardas estéticas modernistas desde sempre. A forma de revolução que se empreendeu com a dança do Stagium é uma filha e herdeira direta dessa era, dessa linhagem.
Na cena, veremos reconstruções de momentos ícone da estética modernista, numa abordagem que é inclusive carregada de um didatismo que, aqui, casa com seu assunto. O Stagium brinca, indireta mas descaradamente, com aquilo que se tornou o mote crítico da Arte Moderna, o questionamento “paranóia ou mistificação?”, que Monteiro Lobato faz a uma exposição de Anita Malfatti. Décio Otero e Márika Gidali historicamente dessacralizam preceitos. E com isso não digo que tirem um valor que seja divino da dança, mas que valorizem mais o que querem fazer — o que querem que a dança faça —, do que aquilo que alguém já tenha dito que a dança tem que fazer, precisa fazer, deve obedecer. O Stagium faz dança em que tudo vale, tudo é possível, nada é impedido e nada será proibido. Desafiadora por natureza, a proposta do Stagium sempre foi uma proposta de vanguarda.
A coreografia coloca em cena as figuras da sociedade sobre a qual reflete, mas confrontadas e acumuladas com elementos de grotesco, de estranhamento, de provocação. Que tensões podem surgir daí? Que mundos rebeldes e desfigurados se levantam insurgentes quando se abre espaço no meio da realidade e do trivial? A mistura coloca o corpo-máquina em convívio com o corpo-carne. Todas as fronteiras, divisões e separações são inventadas, imaginadas e, no limite, opcionais. E a cena as atravessa. Tudo é vida, tudo é mundo, tudo é arte. Engolida. Mastigada. Digerida. Antropofagia teatral.
Enquanto homenagem e reflexão, A Semana é especialmente interessante porque se debruça mais sobre a estética das vanguardas do que sobre as problemáticas questões pessoais, éticas, e individuais dos modernistas. Sabemos há muito que o modernismo não é — nos termos de agora — heróico, inclusivo, talvez nem louvável. Mas sua contribuição artística é inegável.
O que protagoniza A Semana são elementos de pastiche, de colagem, que são usados para revelar camadas, através das acumulações. Por exemplo, uma cena de trio com a Bachiana N.1 de Villa-Lobos trabalha numa relação íntima com proposta estética do compositor, que sustenta o projeto das Bachianas: elas se referem a uma forma, a um jeito de fazer, a um autor, mas com um tanto de desajuste, de invencionismo. Tal qual a música, a coreografia também é algo que traz o clássico, mas tensionado, provocado. Por essa mesma questão, casa tão bem com a companhia: esse é o trabalho histórico do Stagium.
A Semana mostra que a Semana de Arte Moderna não é só 7 dias, não é restrita a um momento. Não é nem de 22 de fato. Ela foi produto de algumas décadas de pesquisa que afetaram e definiram já um século (e mais) de arte, de estética, de pensamento sobre arte. À presença quase unânime dos anos 1980 na cultura popular atual, só faz sombra, de verdade, essa era dos anos 1920. A Semana é também sobre isso: olhar um passado que não só determinou o presente, mas que ainda é o presente. Mais que um divisor de águas, a insistência do modernismo se coloca como a pedra no caminho, que aqui vira cena, movimento e dança.
A Semana
Ideias e Coreografia – Décio Otero
Direção teatral – Marika Gidali
Música composta especialmente – Lívio Tratemberg
Figurinos – Carlos Alberto Gardim
Produção – Marika Gidali, Marcos Palmeira e Fabio Villardi
Fotos – Arnaldo J. G. Torres