Romeu e Julieta | São Paulo Companhia de Dança
A recente estreia da São Paulo Companhia de Dança, Romeu e Julieta, de Giovanni de Palma, é mais uma variação nos muitos caminhos que a companhia trilha. A abordagem em múltiplas áreas que se complementam na missão dessa companhia estadual se revela um privilégio tanto para aqueles que a fazem como para aqueles que a ela assistem, numa proposta de encobrir múltiplas frentes de realizar, pensar e divulgar a dança, que apenas uma companhia com esse aporte e apoio poderia desenvolver.
Para a companhia, essa obra é uma grande mudança estrutural: por um lado, desde a sua criação em 2008 o elenco não apresentava uma coreografia que ocupasse o programa inteiro; por outro, mais que o formato do programa, seu conteúdo, um ballet, em estilo clássico e narrativo, com uma das histórias mais reconhecidas da literatura, mas também um dos enredos mais remontados da dança. A quantidade de versões existentes no mundo para Romeu e Julieta é impressionante: algo sugere que toda grande companhia de dança, em algum momento, quer a sua própria versão.
A produção altamente internacionalizada contou com colaboradores diversos tanto para as proposições visuais, como para o desenvolvimento do espetáculo em seus diversos sentidos. Ao longo do ano, foi possível acompanhar pelas redes sociais (onde a companhia está profundamente inserida, numa grande plataforma de divulgação e, mais ainda, de contato com o público) as diversas etapas dessa produção, que teve aulas de esgrima e estudo do texto da peça de Willian Shakespeare.
Romeu e Julieta é colocada, entre as obras do Bardo, no grupo de suas peças aprendizes. Sua primeira tragédia, foi escrita sob encomenda e tem o enredo frequentemente pendendo entre a tragédia amorosa e a crônica social – estilo que já consagrara o autor em seus dramas históricos. Essa dupla articulação da própria peça gera, frequentemente, tanto no teatro como na dança, uma dificuldade interpretativa para a realização: se por um lado a história contada é a dos jovens apaixonados, por outro se destacam os motivos sociais do impedimento ao relacionamento dos dois, a luta entre as famílias, a ação e influência do Estado sobre elas, e, como o epílogo da peça sugere, o exemplo e relevância social que se mostra a morte dos dois amantes.
A versão que Di Palma encena e coreografa para a São Paulo Companhia, segue, tal qual a maior parte das outras versões coreográficas, unicamente a linha do enredo do romance. Di Palma trabalhou numa redução da trilha sonora original de Prokofiev, remontando a história em dois atos e dez cenas, removendo alguns personagens e reduzindo consideravelmente o tempo de duração. A proposta da redução temporal parece bastante esperta. Há muitos anos foi perdida no Brasil a tradição de coreografias extensas (e, mesmo, narrativas), sobretudo em estilo clássico, o que deixa o público, mesmo aquele mais assíduo à dança atual, inicialmente distanciado de uma proposta tal qual seria a remontagem de um Romeu e Julieta importado, em versão integral – missão que, no entanto, também se espera que chegue, em um momento mais propício, à São Paulo Companhia.
O que encontramos no palco é então um retrato da história de amor mais conhecida de todas, em uma versão original, criada para esses bailarinos e nesse momento – tanto da dança no Brasil, como da dança dentro dessa companhia. Coreograficamente, Di Palma mostra uma sensibilidade que descobre os corpos dos bailarinos. É interessante que ele já havia trabalhado com a companhia para a remontagem de 2011 de Supernova de Marco Goecke, de forma que tinha – já previamente – alguma proximidade com a São Paulo e seus bailarinos, que pode ter sido um facilitador para sua criação.
Nessa escolha, vemos, tal qual a peça aprendiz de Shakespeare, uma obra aprendiz da companhia: não porque haja um senso de amadorismo (nem a peça nem a coreografia o tem), mas por serem novos experimentos, com os quais é necessário atenção e cuidado. Cuidado que se revela no grande aporte que tomou a obra, e todo o seu preparo em diversas áreas desenvolvido pela companhia. A boa recepção do público sugere o acerto das escolhas.
Ao dividir os dois atos da obra, o coreógrafo propôs um primeiro ato mais leve, e um segundo mais dramático. E, de fato, seu segundo ato rende mais. A concentração do enredo, a quantidade de conflitos e emoções oferecem mais material, tanto aos intérpretes como ao próprio coreógrafo, produzindo um conjunto denso e que prende a atenção. A leveza do primeiro ato, ao se misturar ao ralo conteúdo de enredo que lhe foi atribuído, deixa um pouco leve demais a cena. As difíceis primeiras duas cenas, a contextualização de Verona e a preparação para o Baile, acrescentam elementos que são fundamentais ao enredo da peça: o temperamento de algumas personagens e a criação de um momento onde Romeu e Julieta se encontrarão. Mas a dificuldade da dança narrativa de contar suas histórias sem o uso de palavras pesa sobre a plateia, que, mesmo a par das linhas gerais desse enredo, desconhece – frequentemente – as nuances da história.
Mas a dança tem suas formas particulares de comunicação. E é nas cenas de grande sentimento que a produção melhor se apresenta. Os duos do casal, a interpretação expressionista da Sra Capuleto após a morte de Teobaldo, e a graça caricatural da Ama (que em todas as montagens de Romeu e Julieta corre o risco de roubar a cena – e aqui não fica para trás), além da cena final, com as mortes do casal, são o que mais chamam a atenção, tanto em concepção como em realização.
Os aspectos técnicos do espetáculo têm seus altos e baixos. As máscaras, que no vídeo documental exibido pela companhia antes do espetáculo mostram todo o trabalho de uma grande especialista, quase somem com a iluminação do baile (salvo a máscara dourada da Sra Capuleto). Os figurinos, que nas fotos de divulgação mostram toda a leveza e encanto de seu trabalho, nas cenas em conjunto se misturam bastante, perdendo seu destaque e suas qualidades únicas, diminuindo seu efeito. Também o cenário, que caracteriza a doçura e leveza do quarto de Julieta, e a rigidez da tumba da cena final, fica, em outros momentos, um pouco seco demais, sem muito do verão e da impulsividade de Verona, mais austero e imutável. O uso dos arcos para a ambientação e construção de uma terceira dimensionalidade em algumas cenas, no entanto, é um trabalho bastante interessante, assim como a ambientação da cela de Frei Lourenço – momento mais interessante da luz – consegue caracterizar o íntimo e o secreto, tanto do casamento dos amantes, como da solução tenebrosa de Julieta para sua morte fingida.
A coreografia construída é complexa, bem articulada e com alguns deslumbres em efeitos e movimentação que de fato agradam a plateia e contribuem para a característica visceral e apaixonante da história contada. Interessante a quantidade de giros presente, quase se articulando com as voltas e reviravoltas do enredo e com a inconstância das personagens – dificuldades da história que foram pequenas dificuldades para os intérpretes, talvez pelo exaustivo trabalho da temporada (assisti ao último dia das apresentações).
A São Paulo Companhia de Dança, desde sua criação, propõe a divulgação de obras caras ao repertório histórico da dança, em remontagens, paralelamente à produção de criações inéditas, apoiadas por grandes nomes da dança, e ao incentivo à produção nacional, que, em 2012 passou também a contar com o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros. Romeu e Julieta é um encaixe da segunda entre as propostas acima. No propósito de recolocar em questão um ballet narrativo, a Companhia importou diversas mentes criadoras. O coreógrafo tem a boa intenção, expressa no programa, de discutir a diversidade brasileira, mas não há muito dessa intenção que se identifique no trabalho em si. É claro, não é um assunto simples. Mas, enquanto intenção, é bastante reveladora da nossa necessidade de termos um Romeu e Julieta brasileiro. Mais ainda, de termos ballets narrativos brasileiros. Não que sejam a única (nem tampouco a melhor) opção da criação coreográfica, mas são uma opção que fica, há muito tempo e em muitos lugares, em segundo plano – sobretudo em São Paulo, cuja dança já nasce mais pendente ao moderno – e que com esse espetáculo, volta à tona, e passa a fazer parte da missão da São Paulo Companhia de Dança.