Críticas

Muito além da homenagem

“Di”, de Miriam Druwe para a São Paulo Companhia de Dança, avança no arriscado campo das obras de homenagem, dele saindo plenamente realizada.

Este ano, a tradicional temporada de junho da São Paulo Companhia de Dança se adiantou, começando já em maio, e completando três programas em dois teatros. Foi no Theatro São Pedro, que já é estabelecido parceiro da SPCD, mas pela primeira vez faz parte da temporada de junho, que o público encontrou o grande presente desse semestre: “Di”, que Miriam Druwe coreografa sobre trilha de Villa-Lobos, e a partir de referência ao pintor Di Cavalcanti.

Leve e brincalhão, o trabalho é uma das melhores obras dessa leva (já extensa) de coreografias refletindo sobre o centenário da semana de arte moderna. “Di” é boa porque independe da efeméride, e, diferente da maioria dos casos a que assistimos, é construída por Druwe, que é de fato uma especialista, e provavelmente a nossa maior, nesse estilo e formato de inspiração em artistas e artes visuais.

Seu repertório, preenchido de obras desse tom, tem um acerto notável em relação ao que normalmente vemos em trabalhos-homenagem, encontrando a boa medida entre a referência e a reapropriação: ela não reencena biografias, não refaz quadros, mas se alimenta de todos esses elementos pra buscar formas de expressar, em dança, paralelos com as artes e os artistas que discute.

O gênio de sua coreografia também segue um aspecto importante pra discutir artes visuais. Druwe trabalha como se fosse pintora, articulando distintamente (mas simultaneamente), a massa e a linha — o conjunto e o indivídio, o bloco e o risco — criando desenho, mas também volume, preenchimento.

Em “Di”, são gestos e sugestões das figuras dos quadros do pintor que vão servir de ponto de partida e chegada para a movimentação, que explora forma, origem e desdobramento, em novas articulações, de personagens que não são contínuas, que não necessariamente carregam enredos, mas que entregam toda a profundidade de uma elaboração artística.

É um trabalho de boas articulações, boas manipulações do conjunto, e extrema integração entre as partes, que da fato conseguem se mostrar tanto enquanto partes como no todo. Nesse sentido, a dinâmica com o cenário — imensas projeções assinadas por Fábio Namatame de telas do pintor homenageado, que vão se aproximando e afastando, mostrando o detalhe e o todo — é muito bem aventurada, porque ela reflete um procedimento coreográfico de sucesso.

Esse é o tipo de proposta visual que tem tudo pra dar errado. As chances de o cenário se tornar notável demais, articulado de menos, ou parecer algo completamente independente da dança são imensas. Nada disso acontece. Recebemos uma realização delicada, articulada, que é bonita, mas, sobretudo, que faz sentido, porque se criou enquanto uma estratégia concreta entre a cena que vemos na projeção e a cena que vemos na dança. Na lista de excelentes trabalhos que Namatame já realizou em dança, esse cenário salta para o topo.

O todo da obra é extremamente teatralizado, e carrega um aspecto lúdico. Esse aspecto é algo que esperamos do trabalho de Druwe, também especialista em dança para públicos infantis. Mas aqui, apesar do investimento no lúdico, o resultado não é uma obra infantil, ainda que seja completamente palatável também pra esse público.

A brisa do mar que conduz a obra leva a excelentes ventos, no encontro do melhor de vários mundos. “Di” é bem coreografada e bem dançada, bem vestida e com um cenário interessante, tem potencial pra agradar vários públicos, não tem nenhuma restrição etária, e parece um verdadeiro prazer de produção: obra boa de ver, e também de dançar. Grande triunfo na programação da SPCD, ultrapassa os limites da homenagem, e entra pro repertório da companhia com expectativa de ser vista muitas outras vezes.

Di

Coreografia: Miriam Druwe

Música: Choro nº 6, de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), interpretada ao vivo pela Orquestra do Theatro São Pedro sob regência musical do maestro Claudio Cruz

Direção Musical: Claudio Cruz

Cenografia e Figurino: Fábio Namatame, inspirado em obras de Di Cavalcanti (1897-1976) cedidas gentilmente por Elisabeth Di Cavalcanti para esta criação

Iluminação: Wagner Freire

Assistente de Figurino: André von Schimonsky

Modelista: Juliano Lopes

Costura: Fernando Reinert e Maria José de Castro

Videografismo e Videomapping: André Grynwask e Pri Argoud (Un Cafofo)

Elenco: Alan Marques, Ammanda Rosa, Ana Roberta Teixeira, Daniel Reca, Diego De Paula, Hiago Castro, Letícia Forattini, Luciana Davi, Luiza Yuk, Mateus Rocha, Nayla Ramos, Nielson Souza, Pâmella Rocha, Yoshi Suzuki

Fotos: Charles Lima