Críticas

O corpo, no universo, no corpo

Real, virtual, corporal, coreográfico: em ‘Mira’ a São Paulo Companhia de Dança cria um universo que nos circunda, tanto em sua versão de cena, como em sua versão em video 360º.

* escrito para o Criticatividade

‘Mira’ é uma obra participativa e demonstrativa. Criada pela São Paulo Companhia de Dança originalmente como um vídeo de realidade virtual em 360º, a coreografia de Milton Coatti, gravada na Oca com o elenco da SPCD, coloca quem a assiste no seu centro. Ficamos ali, bem no meio de um turbilhão de movimento e de bailarinos, cujos gestos parecem domar o espaço e nos apresentar o tempo. O tempo todo ela nos diz “veja!”, e seguimos olhando, daquele ponto de vista que raramente temos — o ponto em que os bailarinos vivem diariamente.

Assistir ‘Mira’ no óculos de VR já é um convite à participação. Somos inseridos na cena, mas apagados: no video, nós — público — não existimos. Participamos quase que como num sonho, do universo que pertence aos artistas da cena. A obra é extremamente curta, e é bom e fundamental que assim seja: não damos conta de atender suficientemente o pedido de ‘Mira’ — há coisas demais para se ver nesse curto tempo, e ver de novo e de novo pode ser a única solução.

Desde seu lançamento, a obra afirma uma tendência de integração de tecnologias digitais com a dança, e provoca seus públicos à experimentação. Não se trata de algo inédito, mas de uma ótima realização da proposta. Primeiro, porque a obra, enquanto gravação, se sustenta. O cenário da Oca parece construído sob medida para recebê-la. Os figurinos de Raquel Davidowicz da UMA trabalham a simplicidade, mas mantêm a provocação do interesse, dando uma moldura moderna aos corpos que se movem à trilha bem escolhida, da versão de Richter para o Inverno de de Vivaldi, pelos caminhos traçados por Coatti.

Atualmente professor e ensaiador da SPCD, o bailarino, que já integrou seu elenco, tem tido boas oportunidades para mostrar seu talento de coreógrafo. Desse ano é também sua criação — nas pontas — para a participação da SPCD com o Theatro São Pedro em Schumann, ou Os Amores do Poeta, que tem o segundo ato assinado por Cassi Abranches.

Aqui, a movimentação de Coatti é trabalhada na descoberta do espaço. Estar no centro e estar nos cantos. Estar próximo e estar longe. Alto e baixo. Explorar o centro e as extremidades — do espaço e do corpo —, nos mostram que o corpo é o espaço maior de realização da dança.

Ao mesmo tempo reflexiva e performativa, a obra fala de si e para si, mas também nos aponta e indica o outro. Isto é o corpo. Isto é o movimento. Isto é o espaço. Isto é a potência. Isto é o desenvolvimento. Isto é a dança.

Para dominar e domar esse universo em 5 minutos, o trabalho é explosivo e dissipativo. Um big bang, a coreografia se faz e se refaz no tempo e no espaço, e se dissolve saindo dele, correndo, perdendo-se da vista do público, e se desfazendo entre os seus elementos. O corpo explode em espaço, e depois capta e absorve os impactos dessa explosão, fechando-os, novamente, dentro de si. Veja! O corpo é um universo.

A obra já é interessante pelo video — que tem o bonus de poder ser assistido por qualquer um e em qualquer lugar e momento — mas é o interesse adicionado por uma apresentação física dessa obra de virtualidade que carrega o maior sucesso da proposta. Em outubro e novembro, por diversos dias, a SPCD ocupou o octógono da Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde ‘Mira’ encarnou em outra forma.

Sim, a companhia ofereceu óculos de realidade virtual para experimentarmos o ‘Mira’ em vídeo 360. Mas o que fazia a ocasião especialmente interessante era a oportunidade de vermos ‘Mira’ acontecer pela primeira vez em carne e osso.

Logicamente, toda a dinâmica muda. No video, somos o centro, e somos invisíveis. Na versão cênica, somos as bordas, o centro, o espaço todo. E muito concretos. Para ainda novas dinâmicas de experimentar a obra, a companhia convida oito pessoas da plateia para dentro da cena. Quatro delas ficam no meio do palco, e reproduzem — de certa forma — o ponto de vista do óculos. De certa forma, porque a concretude de estarmos ali — e não no virtual — já muda muito da obra. Nosso ângulo de visão, e as possibilidades de visão periférica do corpo — que continua sendo mais avançado que a máquina — alteram as possibilidades de lidarmos com a coreografia no espaço, mesmo que o nosso ângulo inicial seja o mesmo.

Outras quatro pessoas são convidadas a ocupar livremente o espaço da cena, podendo interagir com os bailarinos e interferir com a obra, em certo tanto. E mesmo para os demais, aqueles que estão assistindo do contorno do espaço cênico — que não tinha uma frente, inclusive — a obra também é diferente, porque ela se realiza com toda essa interferência.

Obra encerrada, nesse mesmo espaço a plateia é convidada a usar os óculos para ver a versão em vídeo de ‘Mira’. E, ai, ainda outras formas de participação, porque podemos assistir às pessoas assistindo à ‘Mira’. Vamos reconstruindo a coreografia na cabeça e no espaço, numa reflexão prática das formas como a dança se guarda e se refaz na memória.

Na nossa frente, ela se reconstrói parcialmente, pela memória dos corpos dos bailarinos, somada à presença dos corpos do público, agora inserido nesse espaço, e movimentando-se com o video, que naquele momento não existe para quem os olha. A memória da dança vai se traçando em tempo real. Entre o corpo presente e os corpos virtuais, entre a memória e a concretude da matéria. O resultado é um acionamento das várias dinâmicas de participatividade que temos — e podemos ter — com uma obra.

Se falta alguma coisa para essa ocasião especial, seria mais tempo de digestão. Uma possibilidade de ver em sequências repetidas vídeo-coreografia-video-coreografia-video-coreografia para uma melhor compreensão e absorção do tamanho do fenômeno de participatividade e presença que ali se constrói. Assim sendo possível refletir ainda mais longe sobre o nosso papel de público em outras situações — mais tradicionais, por exemplo, como quando na plateia em frente a um palco.

A reflexão sobre o acionamento da memória se faz nesse programa em golpe de mestre: depois de ‘Mira’, no mesmo espaço é dançada ‘Mamihlapinatapai’, que Jomar Mesquisa criou para a companhia em 2012. Re-espacializada para o octógono, a obra perdeu sua frente, sendo dançada em todas as direções. Inevitável que com isso perca-se algo — o distanciamento, a perspectiva, o controle da luz, da sombra, da cena, do espaço. Mas o que ela nos entrega é algo completamente de outra ordem: a proximidade, o íntimo.

E o resultado é funcional porque ele dialoga com a estrutura e proposta na própria obra, que, agora, parece ter sido desde sempre feita para ser vista dessa forma. Ela sempre foi bela, mas tão de perto é ainda mais que isso. Da proximidade temos novos ângulos para ver os pés e as mãos dos bailarinos, tão importantes na coreografia de Mesquita. E assim, passamos a compartilhar, a fazer parte do momento de vontade, de desejo, de potência, que é ali retratado.

Criar novas possibilidades para a dança e para a sua experiência é uma proposta fundamental, e que se encaixa bem nas atividades da SPCD, que em seus dez anos vêm buscando ir de encontro a seu público já fiel, e também a novos públicos, em diversos espaços e estruturas de apresentação. O ponto-chave de tais desejos é que não sejam feitos à despeito da estética, mas a partir dela: para engrandecer o espetáculo e mostrar, em qualidade, as muitas potências da dança. E é o que acontece aqui. Do coração do mais antigo museu de arte de São Paulo, ‘Mira’ nos aponta a dança. E saímos de lá dispostos a encontrá-la de novo.