Críticas

The Seasons / Suite Para Dois Pianos / Sechs Tänze | São Paulo Companhia de Dança

Mais do que um jogo de linhas, o último programa da temporada de junho da São Paulo Companhia de Dança estabelece reflexões sobre linhagens na história da companhia, em pontos que vão ligando seu passado a seu futuro. O encerramento da temporada é crítica nova no Da Quarta Parede.

A temporada de Junho da São Paulo Companhia de Dança no Teatro Sérgio Cardoso se encerrou com mais uma estreia da companhia, e duas obras do repertório ativo, numa mistura de coreógrafos e referências que vêm completar a proposta que a direção assinala ao programa de um “jogo de linhas”. Aqui, as questões já observadas  em críticas anteriores acerca dessas linhas — seja nas propostas de movimentação empregadas pelos coreógrafos dos programas, seja no sentido de uma percepção de linhas mestras na organização do repertório da SPCD — são retomadas e confrontadas com o terceiro programa proposto para a temporada.

Esse programa abre com uma criação de Édouard Lock, coreógrafo marroquino que trabalha no Canadá, onde fundou a La La La Human Steps, tendo coreografado para diversas companhias notáveis do mundo, como o Ballet de l’Opéra de Paris, o Het National Ballet e o Nederlands Dans Theater. The Seasons, sua criação de 2014 para a SPCD usa música de Gavin Bryars, que, por sua vez, se inspirou nas Quatro Estações de Vivaldi para uma releitura contemporânea e em doze movimentos.

Ainda que a trilha tenha sido uma criação original e para esse ballet, Lock não trabalha a partir de uma proposição musical. Seu interesse de manter a independência entre as diversas artes que compõem o todo do espetáculo está presente no que diz respeito ao andamento da coreografia, que usa gestos derivados de possibilidades cotidianas e simples — como tocar o rosto, ou ajeitar os cabelos —, mas os associa em múltiplas e complexas combinações. Essas combinações, em suas tantas micro-variações, são aceleradas ao máximo do limite dos bailarinos que as interpretam, e deixam a música como um pano de fundo minimamente sugestivo: uma outra voz em cena, mas que não dialoga diretamente com a dança.

Lock propõe The Seasons  como uma interação entre memória e percepção, em múltiplos níveis: além da memória das Quatro Estações de Vivaldi, encontramos a memória do ballet clássico, que tem princípios e passos desconstruídos e reestruturados pelo coreógrafo para as cenas — realizadas em pontas —, e uma memória pessoal, ligada às formas do corpo, que identificamos pelo gestual que compõe a coreografia.

A essas memórias, junta-se ainda uma outra: a memória do tipo de trabalho do coreógrafo. Quem já assistiu a alguma outra criação de Lock, reconhece a sua movimentação típica e, seu gosto pela iluminação pontual — que aqui alcança novos patamares, com um mapa de moving lights que usa 650 deixas de luz, com trocas marcadas pelos movimentos dos bailarinos em cena, e que alternam direcionamento, incidência e abertura, criando espaços de luz e sombra dentro (e fora) dos quais os bailarinos dançam entre claro e escuro.

Essa luz coreografada em complexidade determina limites e cobra grande precisão na execução da obra. O trabalho com os interstícios, com a fronteira onde começam e terminam os focos, com o tempo de se acenderem e apagarem, causa, além do impacto, a dúvida. Frequentemente, ficamos sem saber se aquele movimento foi feito para ser mostrado fora da luz, ou se tratava-se apenas de um incidente no posicionamento dos bailarinos. No todo, fica uma indagação interessante entre o ocasional e o programado, que, talvez com mais tempo e maior convivência com a obra, continue nos mostrando ser não um acidente curioso, mas uma proposta bem construída.

O cenário ocupa unicamente as pernas do teatro, cada uma com seis painéis de formas orgânicas, que sobem e descem em alturas variadas, mas que ali aparecem apenas decorativamente, sem nenhuma significação aparente, assim como os figurinos que moldam os corpos, mas pertencem a um todo genérico.

Esse todo remete diretamente a outras obras do coreógrafo. Seja pelo estilo de movimentação pelo qual ele ficou mais conhecido desde Amélia (2002), seja pela estrutura de alteração dos movimentos, de colocação do cenário, e mesmo dos figurinos de sua obra seguinte, também de 2002, AndréAuria, feita para o Ballet de l’Opéra de Paris. Mais do que um estilo, aqui parecemos ver variações dentro de uma mesma receita, que seguem um padrão identificável até demais. Algo completamente compreensível nas obras do mesmo ano, mas que em The Seasons, mais de uma década distante delas, ocasiona mais dúvida do que reconhecimento do tipo de trabalho que Lock continua fazendo, numa reflexão de o quanto de suas criações está em diálogo com suas obras anteriores, e o quanto é simplesmente uma nova apresentação de uma receita pronta.

A obra seguinte do programa, Suite para Dois Pianos, de Uwe Scholz, também dialoga intensamente com a memória da SPCD. O bailarino e coreógrafo alemão estudou com Márcia Haydée na escola de John Cranko em Stuttgard, depois fundando o Leipzig Ballet, onde permaneceu até sua morte em 2004. Foi no ano 2000 que Giovanni di Palma se juntou ao elenco do Leipzig. Di Palma, atual assistente de coreografia da São Paulo Companhia de Dança, já remontou e criou coreografias para o elenco paulistano. A SPCD também tem uma coreografia de Cranko em seu repertório, Legend (1972), originalmente criada para a bailarina Marcia Haydée — e Haydée também criou, no ano passado, a sua primeira coreografia para uma companhia brasileira, O Sonho de Dom Quixote, que apareceu no programa anterior dessa temporada, e na temporada de 2015.

Toda essa genealogia coloca a obra de Scholz dentro de uma herança compartilhada, e que vai se fincando também na história da SPCD. Não há aqui nenhuma sugestão de nepotismo. Suite para Dois Pianos (de 1987, a remontagem de 2016 estreando neste programa) é uma obra interessante em si e que se sustenta na temporada, usando música de Rachmaninoff e movimentos inspirados por quatro quadros em preto e branco da série Ponto e Linha sobre Plano de Kandinsky, que são usados alternadamente como cenário ao fundo do palco.

Esses movimentos, ainda que não façam uma transcrição das linhas dos quadros, estão em intensa relação com elas, ilustrando, não necessariamente um mapeamento dos deslocamento entrevisto nos quadros, mas uma relação de posicionamentos e movimentos que se expressa tanto nas obras plásticas como na obra coreográfica. O resultado é especialmente bem sucedido: a obra propõe múltiplos níveis de percepção e o movimento informa a música, que ajuda a entender os quadros, que oferecem novas reflexões sobre a dança — em ciclos sobre ciclos que convidam e pedem que a peça seja continuamente refeita e novamente assistida. No todo, um conjunto provocante para o repertório da SPCD, e que mostra um sucesso do trabalho dos bailarinos que pode ser reputado à coreografia, ao coreógrafo, ou à relação do remontador com a companhia ao longo dos últimos anos, valorizando aqui alguns exercícios de continuidade.

Outras formas de continuidade, e de genealogias e linhagens, aparecem ao final do programa, com Sechs Tänze do tcheco Jirí Kylián. Terceira coreografia dele dentro dessa temporada da SPCD, e primeira a ser montada pela companhia, em 2010, a obra de 1986 propõe uma criação cômica, uma paródia dos hábitos da sociedade do tempo da música de Mozart que serve de trilha para a obra. Nela, vimos pela primeira vez na SPCD há seis anos, os maneirismos e o gosto pelo trabalho com objetos de Kylián — características que se replicaram em outra obra do tcheco também remontada na SPCD, Petite Mort (1991), ponto alto do programa de abertura da temporada 2016 da companhia.

Sechs Tänze traz os bailarinos à cena entre a sugestão do final do século XVIII e dos casamentos e relacionamentos da época, e a percepção do trabalho contemporâneo do coreógrafo. Tendo sido muitas vezes dançada pela SPCD, aqui ela continua com a sua recepção calorosa: a comédia que ela apresenta é boa e bem desenvolvida, casada com a música e com as estruturas cênicas, formando um conjunto que se completa e que se serve. A cada nova récita, aguardamos ansiosos o aparecimento das Mega Stars, o nome dado aos bailarinos que interpretam os personagens mais cômicos da montagem, ainda que o maior conteúdo e valor da obra fique com o elenco dançante, que vai além da provocação cômica e clownesca, e coloca em dança, um pouco do melhor do trabalho do coreógrafo.

Aqui, a questão das linhagens e genealogias se estende para além do entendimento, ja comentado em outra crítica, dessa aparente preferência por Kylián na SPCD, e chega no que há de mais íntimo a uma companhia de dança: seus elencos. Talvez fosse uma forma de saudosismo, mas ficava ao longo da apresentação um grande desejo de rever aquela obra com o seu elenco original da montagem de 2010 — do qual restam poucos bailarinos na companhia, e menos ainda na cena. Não se trata de um desmerecimento dos bailarinos que entraram mais recentemente para o grupo, e que foram, diversas vezes ao longo dessa temporada, elogiados por suas qualidades, tanto direta como indiretamente, e que, mesmo nesse programa, mostram o valor de suas capacidades.

Talvez se trate de um tempo de convivência com a obra, talvez se trate dos processos de como os novos elencos vão aprendendo as coreografias que já fazem parte dos repertórios da companhia e do público que a acompanha, mas, de volta da apresentação, me senti compelido a buscar o programa de 2010 e ver, ao menos em fotos, aqueles bailarinos de então. De certa forma, isso mostra o sucesso de um dos interesses da SPCD de criar essa cultura, rara no Brasil, de reconhecimento dos bailarinos do elenco. Mas, como resultado, algo parecia faltar nas interpretações desse momento, que mantinham a caricatura, mas não apresentavam a entrega de elencos anteriores.

Num balanço geral, talvez a estreia de Suite para Dois Pianosnos valesse mais ao final do programa. Ponto alto da noite, ela trouxe, já em sua primeira apresentação, uma maturidade que é ainda almejada por The Seasons, e que parece um pouco abandonada na atual versão de Sechs Tänze. Nesse programa, todo em preto e branco, mais linhas se convergem, apontando linhagens novas e outras já estabelecidas, enquanto vão ligando os pontos do passado ao futuro da São Paulo Companhia de Dança.

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