Zorba, o Grego | Ballet de Santiago
De volta ao Brasil, o Ballet de Santiago traz a cinco capitais o ballet Zorba, O Grego, de Lorca Massine. Apoiada num pretexto dionisíaco de ritual catártico, a história contada pela companhia chilena contagia pelo aspecto vertiginoso da cena, mas demonstra uma problemática sugestão de um escapismo consciente, que prefere ignorar qualquer realidade e a substituir por movimento sem sentido. O desencaixe de Zorba é foco de crítica nova no Da Quarta Parede.
O Ballet de Santiago não vinha para o Brasil desde 2005, logo depois que Márcia Haydée, uma das maiores estrelas internacionais de origem brasileira, voltou à direção da companhia chilena. Formada pela Royal Academy de Londres, e tendo dançado com a Companhia do Marquês de Cuevas, Haydée foi reconhecidamente a musa de John Cranko, para quem dançou por muito tempo no Stuttgart Ballet, companhia que também dirigiu, por 20 anos. Foi durante esse período que o nova-iorquino Lorca Massine, filho de Leonid Massine, criou para a Arena di Verona a obra Zorba, O Grego, com um trilha sonora criada a partir da trilha do filme de 1964, este, já uma adaptação do romance também homônimo publicado por NIkos Kazantzakis pela primeira vez em 1946.
Foi há três anos que Haydée convidou Massine para remontar Zorba para o Ballet de Santiago, acumulando ainda mais tempo na conta do todo dessa transferência livro- cinema- trilha sonora- palco. Só a primeira versão do ballet já é mencionada como tendo levado oito anos e dez rascunhos para ficar pronta para o palco.
Uma grande espera, e longos períodos de trabalhos, que se juntam a uma grande companhia estável, liderada por uma brasileira, e que estiveram na Temporada de Dança 2016 do Teatro Alfa, antes de seguirem turnê por mais quatro capitais brasileiras. Fácil de indicar que as expectativas construídas para essa recepção eram grandes. O retorno, não tanto.
De uma obra esticada por tanto tempo, espera-se um apuro técnico e um encanto que deixaram a desejar, em múltiplos sentidos. Comparando com outras das obras também trazidas para cá pela Dell’Arte, por exemplo, encontramos um resultado confuso e enfraquecido, mesmo que seja chamativo. A iluminação astuta contrasta com um cenário triste: se o seu trabalho seria o de valorizar aquilo que mostra, ficamos nos questionando quanto valor é possível agregar ao que está no palco. Se a música se desenvolve interessantemente, mesmo remetendo diversas vezes a outras peças clássicas reconhecidas, a operação do som carregava um amadorismo que não condiz com a companhia, tampouco com o local de apresentação, e com aquilo que ali costumamos ver.
A interpretação dos bailarinos é mediana. Há bons solistas no elenco, mas um grupo que parecia estranhamente fraco e pouco preparado dentro da coreografia. A coreografia, em si, tem algo que permanece relevante. Um tom de novidade na mistura dos movimentos clássicos a formas e estruturas advindas de outras técnicas que, se não representam exatamente a Grécia, representam algo estrangeiro o suficiente para ser encontrado com olhos curiosos.
Permanecem na memória, junto de certas passagens bastante pegajosas da música já célebre do filme, movimentos que exploram a dualidade do alto e baixo, do estendido e do contido: Zorba, com as pernas permanentemente flexionadas, desenvolvendo repetidos giros pequenos e próximos ao próprio corpo, e usando os braços em poses estáticas, se contrapõe a John, o turista americano da história, que trabalha em saltos e giros expansivos, de braços soltos e pernas esticadas em movimento contínuo.
Curiosa essa movimentação contida do personagem que dá título à obra, retratado no libreto como um espírito livre, um herói dionisíaco ancestral, de quem não parece estranho esperar algo mais grandioso do que aquilo que encontramos. Porém, mais estranho ainda, é que o coreógrafo apresente sua obra como uma versão moderna da história. Zorba é antigo e beira o antiquado, mas por questões que vêm do enredo e do libreto.
Possivelmente um problema de adaptação, talvez uma característica do romance original, quem sabe uma dificuldade na transposição da história desprovida de palavras. Mas aquilo que nos é sugerido como um retorno ao rito, uma insistência da necessidade de superação, e um uso da dança para a catarse da sociedade, chega hoje aos palcos como uma malfadada história, povoada de personagens rasas ao limite, que não combinam nem com o tom, nem com a técnica dos solistas do BDS.
Se Marina, a jovem grega por quem John se apaixona, explode no palco, em arroubos de movimento que colocam na história um todo dramático, os demais elementos narrativos parecem lidar não catarticamente, mas de maneira leve e descuidada, com demais elementos. John e Marina são perseguidos pela comunidade. A solução: dançar. John sofre uma tentativa de assassinato. A solução: dançar. Madame Hortense — frívolo e pouco desenvolvido interesse amoroso de Zorba, morre. O que fazer?: dançar. Marina é morta por uma multidão. O que fazer?: dançar com toda a multidão num gran finale que desconsidera a existência e a humanidade da personagem, e soa sinceramente desrespeitoso.
Os processos encenados não são catárticos, são de escapismo consciente. Retratam uma decisão tola, e especialmente perigosa nos tempos em que vivemos, de não se olhar a realidade, de não dar atenção ao valor das coisas. Tudo pode ser substituído pela festa, pela dança, pela música e pelo aplauso, que é cobrado da platéia em repetições em estilo de fanfarra que não foram sinceramente pedidas pelo público, e sim apresentadas como parte constituinte e previsível da obra.
A dificuldade com Zorba é esse lugar mal resolvido entre um cômico simplório e um trágico. Não tem a leveza de um, tampouco tem a seriedade do outro. Desencaixe: é essa a impressão geral da montagem. Uma obra que pode ter tido o seu momento, e ainda pode ser contagiante por meio de diversos efeitos chamativos — como a música que prende e certos elementos da coreografia — mas que, hoje, parece profundamente descabida, e, apresentada aqui, agora, parece nos sugerir, um tanto levianamente, que o importante é fechar os olhos à realidade e dançar, vertiginosamente.