Críticas

Triz | Grupo Corpo

O novo espetáculo do Grupo Corpo sugere, já pelo nome, a ideia de risco. Com as cirurgias e recuperações do coreógrafo Rodrigo Pederneiras, que forçaram o adiamento das apresentações na Temporada de Dança do Teatro Alfa, de fato parece ter havido um risco. O próprio programa o sugere, indicando que por pouco, por um triz, a companhia não ficou sem um espetáculo novo nesse ano. Porém, o que em coreografia poderia sustentar a suposição do risco como uma dramaturgia de origem do espetáculo?

Em questões de movimento, o risco se apresenta nas dinâmicas de alteração da lateralidade e da linha de equilíbrio dos corpos, que, já tradicionais do trabalho da companhia, aparecem em Triz ainda mais notavelmente. Para além disso, chamam a atenção os múltiplos duos femininos, e a curvatura na cervical, bastante oposta ao tronco ereto e rígido que a companhia mostra em seu repertório, como no espetáculo que acompanha essa temporada de estreia de Triz, Parabelo, de 1997.

Ademais, em coreografia, o trabalho – já tradicionalmente genial e autoral – de Pederneiras mantém os princípios do quadril móvel, extremidades soltas e articulações que são lançadas ao movimento, o uso constante de tempo e contratempo, apoio e sustentação. Em Triz não há grandes arroubos, não há grandes saltos, ou coreografias mais aéreas: temos um corpo quase contido – mesmo que frequentemente escapando dessa contenção – e trabalhado, sobretudo, no plano médio. Ai talvez, sim, um risco, nesse caso, de estilo, como se deflagra na oposição à estreia anterior da companhia, o lírico Sem Mim (2011).

O risco se concretiza visualmente também, com a marcação explícita do palco, tanto em faixas no chão como em feixes de luz: recorte espacial que reflete o recorte cenográfico do palco, contornado por uma cortina de cordas de ferro, quase como um acúmulo das cordas que constroem a trilha sonora assinada por Lenine. Porém, enquanto algumas coreografias – como a primeira – se resolvem com esses limites, discutem o dentro e o fora, o de cá e o de lá, outras coreografias o ignoram. Sem nem mesmo uma discussão de como borrar essas fronteiras, numa temporária suspensão das mesmas. Se o espetáculo então discute o risco dos limites, o que descobrimos é que corremos riscos também com os próprios limites: nem sempre presentes, como propõe a luz; ainda que demarcados, como sugere o palco riscado.

Essa bilateralidade também se retoma na coreografia, com a alteração do eixo de equilíbrio constantemente para sua projeção simétrica, colocando os bailarinos num estado constante de tour de force corporal. Construção complementada, no domínio do visual, sobretudo pelo figurino. A malha de corpo inteiro, em preto e branco, uma cor em cada metade do corpo dos bailarinos, reforça a movimentação proposta, ao dividir o bailarino em metades opostas, mas que são complementares das metades dos outros em cena, forçando uma articulação e provocando o campo de visão da plateia, ao questionar outros limites: onde começa um e onde acaba outro.

As cortinas que contornam a cena, mesmo com todo o seu impacto, são pouco usadas para a construção do espetáculo, servindo a maior parte do tempo apenas como contornos e outra forma de limite. Seu grande destaque é na sétima música/ cena, em que os bailarinos aparecem por trás delas (tanto da de fundo como das laterais), enquanto a sonoridade da trilha revela a gravação de um ensaio na sede da companhia, com uma forte e expressiva contagem, e a coreografia tem os bailarinos pegando passos (, quase que ensaiando), até entrarem no acompanhamento da contagem da trilha (, na dança). Ai reside a maior discussão de Triz. Por um triz, por muito pouco, os bailarinos estão dentro ou fora da cena. As cortinas que isolam o fundo e os lados da cena se mostram parcialmente penetráveis, e a plateia encontra os limites do ensaio e da cena, do dentro e fora do palco.

Mas o momento é fugaz no espetáculo. E rapidamente retomado por mais entradas e saídas pelas aberturas fixas da cortina. E, nesse sentido, num balanço geral, pouco acontece em cena. O que não é um problema, sobretudo no histórico da companhia, cujas obras não são muito afeitas às estruturas narrativas. Mas, particularmente no caso de Triz, permanece no ar o questionamento daquilo que é mostrado. Afinal, se um “triz” é um pouco, que pouco é esse?

O maior conteúdo do espetáculo pode ser de fato a discussão dos limites. Há os limites de cada corpo, mas eles se confundem; há os limites da cena, mas o para além dela também se manifesta; há os limites das segmentações do palco, mas eles não são perenes. Tudo se recorta, se desenha, se delimita, mas nada se mantém o tempo todo. Um pouco mais e um se torna o outro. Um pouco menos e o espaço se perde, se desconfigura. Por um triz a obra quase não aconteceu. Mas em cena, é por um triz que ela se revela e acontece.

Riscos de propostas de novos caminhos para o Corpo? Dificuldades da criação com a limitação do corpo do coreógrafo, em recuperação? Mesmo sem a certeza, Triz é algo diferente – e, assim, um risco – no repertório da companhia. Será interessante ver que outros limites essa obra questiona, quando apresentada junto de outras coreografias. Como sugestão, Missa de Orfanato, de 1989, e Lecuona, de 2004 (já que Bach, de 1996, esteve há poucos anos de volta aos palcos): frente aos exponenciais líricos da companhia (e também na continuidade dos trabalhos, com as próximas estreias) será possível entender se foi esse um momento de discussão pontual, temática, ou um prelúdio de um novo caminho do Corpo.

A dramaturgia do Corpo foi, primordialmente, uma dramaturgia do corpo, uma dramaturgia de corpos. E aqui vemos o corpo recortado e escapando ao recorte. Determinado, mas fugindo de seus caminhos. A própria movimentação lhe parece se esquivar, reforçando não apenas as possibilidades, mas as dificuldades e as capacidades de ultrapassá-las – tanto do Corpo como de seus corpos. Corpos que aparentam ter limites e que, por um triz, em Triz os escapam.

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