Críticas

Em carne viva

No que você se agarra quando tudo parece incerto? ‘Cura’, de Deborah Colker investiga ciência e fé, na busca pela cura daquilo que não tem cura. Tema pessoal e íntimo da coreógrafa, abre espaço de proximidade e contato para o público, em meio à estrutura de espetáculo que faz parte da sua assinatura coreográfica.

Com um figurino que deixa o corpo em carne viva, Cura, o novo trabalho da Companhia de Dança Deborah Colker reflete sobre ciência e esperança, frente ao desejo da cura daquilo que não tem cura. A obra não tem ligação com a pandemia, começou a ser projetada há quatro anos, mas na verdade toca em um ponto mais antigo, pessoal e íntimo da coreógrafa e de sua família: seu neto, Téo, de doze anos, tem epidermólise bolhosa, doença rara, que provoca bolhas e deslocamentos da pele, até agora sem cura.

É a voz de Téo que abre o espetáculo, na sala escura, enquanto ele conta a história de Obaluaê, orixá da peste e da cura. Ritualístico, porém bastante ecumênico, Cura não está fixo na fé dos orixás. Pela obra convergem diversas religiões, sem gradação de importância, convivendo quase sem distinção: quem tem pressa pela cura que dizem que não existe não pode se fiar a uma entidade só.

Uma dessas entidades onde a cura é buscada é a própria ciência. No trabalho, Colker reflete sobre as doenças e sobre os tratamentos, junto das esperanças. Faixas e bandagens lado a lado de rituais, de orações e súplicas, de manipulação genética. A partir da negação, do “isto não tem cura”, a obra procura suas continuidades por toda parte.

A construção é uma sequência de cenas relacionadas, mas quase que independentes. A cada uma, revemos um procedimento artístico que fica como assinatura da coreógrafa: cada cena usa um recurso cenográfico distinto, que altera a dinâmica de exploração do movimento e da temática pelos bailarinos. São grandes estruturas que reproduzem a roupa de palha que cobre todo o corpo de Obaluaê, um muro de caixotes que toma todo o fundo da cena, e, notavelmente, rampas móveis sobre a qual alguns bailarinos dançam, além de carregarem as intensas projeções de texto que seguem na obra.

Bastante fiel à sua proposta, Cura mistura momentos de leve e deliciosa crença e esperança com outros mais pesados, melancólicos, que olham pra realidades tristes. Cura fala com muita gente, reflete sobre a angústia da esperança que não se sabe se é possível carregar. E, casando com esse momento tão carente de esperanças, ajuda a explicar seu sucesso notável de público.

O trabalho de Colker sempre foi um trabalho de consideração e preocupação com o público, e muitas vezes criticado por isso. Cura, mais uma vez, mostra que existe muito público possível pra dança. Nas duas semanas da temporada de São Paulo no Teatro Alfa, filas de espera e sessão extra marcaram esse interesse. A obra foi lançada anteriormente em video na Globo Play, com acesso livre e gratuito na transmissão de lançamento, e isso em nada diminuiu o interesse do público.

Aqueles que viram as duas formas puderam se beneficiar dos efeitos de aproximação e distância: se é interessante poder ver a câmera fechada que dá detalhes do rosto dos bailarinos, é ainda mais impactante poder perceber a dinâmica do uso e da transformação do espaço em cena, acontecendo na nossa frente.

Os recursos cênicos são reconhecíveis em outros trabalhos. Alguns emprestados diretamente, outros notavelmente transformados. Aqui, o foco fica na modificação do espaço do palco com estruturas, mas persiste um tanto essa projeção, de forma insistente e quase didática, na maioria dos casos, para palavras de efeito e sequências genéticas. Dado momento, a projeção passa para a parede montada no fundo do palco, e sobre ela lemos salmos, enquanto os bailarinos elaboram construções que fazem um deles flutuar, como se andasse sobre as águas. As referências são muitas, tocam em diversos espaços da memória, e convidam ao pensamento. No que você se agarra quando tudo parece incerto? A sua esperança é desejo, é fé, é mito, é ciência?

Não há conclusões. A reflexão aqui é sobre a própria possibilidade ou impossibilidade de existência de uma cura, e de tudo aquilo que criamos ao nosso entorno pra discutir essa complexa dinâmica. É um tema espinhento. Sensível e doloroso. Toca as pessoas em histórias que elas mesmas às vezes não gostariam de recuperar. Mas quem passa por isso sabe que esse desafio é constante e contínuo. 

Se ele ameaça entristecer, o espetáculo aposta também em uma outra estratégia para a cura: a felicidade, que transborda na cena final, numa referência a Moçambique e a danças africanas que, se destoa um tanto do restante do espetáculo, ajuda a sairmos dele um tanto mais leves. Ali também apreciamos melhor a afro-sinfonia da trilha sonora de Carlinhos Brown, de muitos tons e referências distintas, pra dar conta dessa proposta que vai de rituais de cura indígenas à edição de material genético.

O saldo é misto, como suas fontes. Ele não tem um só tom, mistura percepções e desejos e parece ilustrar uma mente que recebe uma informação e, ao mesmo tempo em que a assimila, tenta construir outras possibilidades. É uma coisa de fé, mas é também uma coisa de ciência, e de arte. 

Ainda mais pessoalizada, tratando de sua intimidade, e se colocando em carne viva, como o figurino de seu elenco, Colker mostra que suas propostas estéticas podem tocar em assuntos sérios e até pesados, sem perder seu gosto pelo espetáculo, que seduz e acompanha o público nessa jornada. São negociações complicadas. Como aquelas de lidar com a ciência e a esperança, e a busca pela cura do que não tem cura. Ainda.

Criação, Coreografia e Direção: Deborah Colker

Criação e Direção Musical: Carlinhos Brown

Direção de Arte e Cenografia: Gringo Cardia

Dramaturgia: Nilton Bonder

Direção Executiva: João Elias

Desenho de luz: Maneco Quinderé

Figurino: Claudia Kopke

Elenco: Angélica Bueno, Gabriel Guimarães, Jaime Bernardes, Jorge Ferreira, Leony Boni, Luan Batista, Marta Batista, Mozart Mizuyama, Olivia Pureza, Vitória Lopes e Yasmin Mattos. Estagiários: Ana Livia Costta e Alexsander Costa