Sobre Isto, Meu Corpo Não Cansa | Quasar Cia de Dança
Em Sobre Isto, Meu Corpo Não Cansa, a Quasar se apoia em cantoras da nova MPB para propor uma obra que reflete sobre possibilidades de amores e relacionamentos. Entre o popular e o cult, um tratamento inesperado das fontes surpreende no todo das obras da companhia goiana, deixando algumas interrogações em meio à força de seus trabalhos, que são discutidos em crítica nova no Da Quarta Parede.
Encerrando a programação do Performa – Festival de Dança Contemporânea, a Quasar Cia de Dança voltou a São Paulo para apresentar Sobre Isto, Meu Corpo Não Cansa, mais recente coreografia do coreógrafo residente Henrique Rodovalho, que estreou por aqui no final de 2014. O elenco reduzido da companhia goiana, agora com seis bailarinos, se ocupou dos 80 minutos da obra que, novamente, traz uma abordagem entre o cômico, o sério e o trágico, a partir de temas românticos que vêm sobretudo da obra de três cantoras brasileiras.
Ao contrário do que foi criado em 2005 em Só Tinha de Ser Com Você, que apresenta canções de um único disco de Elis Regina, aqui existem diversas canções de novas vozes da música popular brasileira atual. Pontuada por uma música de Clarice Falcão (Um Só) que volta diversas vezes ao longo do espetáculo, a obra articula cenas de amores possíveis e relacionáveis. Essas cenas se passam num espaço neutro: o palco é contornado por cortinas que deixam entrever os bastidores onde um aspecto de produção fica quase forçado, com passagens insistentes dos bailarinos, cujas sombras vemos por trás dos panos.
É possível observar uma divisão interessante em dois momentos da obra, marcados por uma alteração intensa da iluminação, desenhada — como de costume na companhia — também pelo coreógrafo, bastante afeito à ambientação cênica. No primeiro dos momentos, temos o predomínio de uma iluminação azul, e coreografias mais leves que sugerem amores para se rir. Neste ponto, um diferencial do que costuma-se esperar das criações recentes de Rodovalho, que carregam em comum marcas de amores difíceis e torturantes, que consomem e assustam. Aqui, perdidas entre o encanto água-com-açúcar bastante apresentado pelas músicas escolhidas, parece que falta um pouco de matéria e sustância para as cenas, que passam arrastadas de uma música a outra.
No segundo dos momentos, identificado por uma iluminação que prefere o vermelho — e que faz lembrar as últimas cenas da visceral Tão Próximo, coreografia de 2010 da companhia — temos uma identificação maior daquilo que se acostumou a apontar como a obra do coreógrafo. Não que ao longo de Sobre Isto identifiquemos novas ou divergentes tendências na composição coreográfica: ainda permanece estável a raiz do movimento articulado e segmentado da Quasar, que passa pontuando cada uma das partes do corpo, e trabalha associativamente entre os bailarinos, que refletem, espelham, alternam e completam os movimentos a sua volta, num grande trabalho de positivo e negativo que identifica o espaço de cada bailarino da Quasar como um espaço ampliado, expandido, e que frequentemente entra em choque com o espaço do outro.
Entre cenas cantadas — com acompanhamento do coreógrafo no violão —, cenas de pantomima que parecem tentar ilustrar a letra das músicas, e cenas que marcam o peso e a profundidade tanto dos trabalhos corporais da companhia como das interpretações únicas dos temas que são escolhidos para as obras, Sobre Isto parece ficar um pouco no meio do caminho. Paira sobre a obra uma dúvida, aumentada pelas escolhas musicais, daquilo que se propõe transmitir, sobretudo na primeira metade da coreografia.
Para além do movimento característico da Quasar, somos colocados frente a uma obra que interage profundamente com as músicas que a embasam — e não só em questões de rítmica, que têm sido exploradas pelo coreógrafo há muito tempo, mas também com um foco nas letras. É ai que a obra de dança se mistura a questões da obra musical de base. Essa nova MPB tem como característica uma tentativa de fuga ao sistema de hits que organiza a indústria fonográfica, abrindo espaço considerável para a inserção da personalidade dos próprios artistas em seus trabalhos, fugindo às regras ou padrões de gêneros que costumam governar a produção.
Daí o impasse: é a excessiva pessoalidade dessas obras musicais que as faz associativas, carismáticas para seu público e, no entanto, parte dessas obras se constrói não dentro de uma tentativa de simplicidade e compartilhamento, mas através de um distanciamento descolado, que faz a nova MPB quase hipster, quase modinha, e recheada de referências que não são nem exatamente populares, nem fazem parte de um cotidiano compartilhado, retratando muito mais a publicização de uma individualidade. Ou seja: para fugir da indústria de formatação de artistas, os artistas exacerbam uma individualidade, como se ela fosse popular. O resultado é questionável. Dialoga com grande parte da população, posto que essa parte também é ligada a esse fenômeno específico de pós-modernidade, mas ao mesmo tempo parece favorecer esse lado cult forçado que marca a nossa cultura atual.
A utilização desse tipo de trabalho musical para a criação de dança, como é o caso em Sobre Isto, é o que mais parece interessante. Se em 2011 Rodovalho questionava as formas de comunicação de sua dança, procurando formas de chegar a um público maior, e não só aos especialistas da dança — projeto que se identifica nas últimas três coreografias da companhia — aqui, o projeto parece se apoiar unicamente nessa escolha musical inusitada para o histórico da Quasar. A trilha sonora não diminui o trabalho coreográfico, não diminui o interesse pulsante da obra, mas parece pontuar um tema — e, sobretudo, um tratamento desse tema — que beira o banal, e nesse ponto sim, se desarticula e desvaloriza o todo da Quasar, construído em camadas e mais camadas de humor inteligente e explorações temáticas que sempre soaram sinceras.