Críticas

BiT | Compagnie Maguy Marin

Entre o social e o ritual, BiT coloca o público numa estranha rave, com música eletrônica e luzes estroboscópicas, onde convivem figuras de roupa social, de roupa cotidiana, monges encapuzados, sacrifícios rituais, estupro coletivo, chuvas de moedas, e até uma orgia. Complexa e incerta, Maguy Marin aposta na força e no impacto para trabalhar o ritmo, em sua 49ª obra, crítica nova no Da Quarta Parede.

A edição Brasil 2016 do France Danse, mega evento de exportação da dança francesa organizado pelo Institut Français de Paris em parceria com a Embaixada da França no Brasil e diversas instituições culturais brasileiras, abre a sua programação de São Paulo no SESC Pinheiros, com a coreografia BiT, que Maguy Marin criou em 2014 para sua companhia, sediada no Centre Chorégraphique National de Rillieux-la-Pape. Com uma trilha sonora eletrônica e metálica, debaixo de luzes estroboscópicas e através de movimentos repetitivos, a coreógrafa explora o ritmo e o pulso, presentes em uma coreografia de uma dança popular medieval, a farândola, que muito lembra certas celebrações tradicionais de casamentos.

A cena é simples, mas eficiente. Pelo palco, sete rampas estão dispostas em meia lua, criando corredores entre elas, por onde, sob uma iluminação inicialmente sutil, e que, durante a maior parte do espetáculo, tende mais à penumbra do que ao claro, vêm aparecendo os seis bailarinos da obra. De mãos dadas, em constante ida e volta, eles desenvolvem os passos simples da coreografia, avançando e recuando pelo palco, enquanto uma voz parece nos fazer uma leitura ritual. É estabelecido um tom cerimonial  que predomina pela obra toda, nos prendendo em alguma situação entre o social e o ritual.

Os bailarinos navegam pelo espaço delimitado pelas rampas, usando-as como se fossem partem do chão. Elas não apresentam impedimento, elas não afetam a movimentação, que precisa, sempre, continuar, reforçando as figuras circulares, e o aspecto cíclico e processual de BiT. O espaço e a situação não são especificamente determinados — a movimentação é antiga, a música é atual, o cenário é neutro, a iluminação é difusa — e não sabemos que circunstância é essa a nossa frente, quais as relações entre os indivíduos, e sua relação mais geral com o todo da obra. Enquanto eles ondulam pelo espaço, pela frente e por trás das rampas, subindo e descendo por elas, e sempre indo e voltando, os bailarinos aparecem e desaparecem da cena, mas o tempo todo permanece a impressão de que sabemos o movimento que eles estão fazendo, dado o caráter de continuidade que nos é apresentado.

Essa continuidade é rompida em dado momento, quando todos os bailarinos somem por detrás das rampas, e vemos a rampa central ser coberta por um tecido vermelho, sobre o qual os bailarinos ressurgem, não mais em pé, nem vestidos e dançando como antes, mas em togas que revelam os corpos nus entrecobrindo-os apenas parcialmente, e escorrendo, lentamente, pela rampa vermelha, todos grudados uns aos outros. Uma situação de êxtase, de orgia, em que os corpos se encontram e se tocam, a princípio lentamente, mas, depois, descaradamente, sexualmente, em posições e movimentos que, se não forem explícitos, são perfeitamente ilustrativos de atos sexuais. Momento desregrado, frenético, em que os parceiros se trocam constantemente, e até a exaustão, quando os bailarinos vão deixando a cena.

Surgem três mulheres com vestidos pesados, carregando o que parecem ser carreteis —Seriam as Parcas, carregando o fio da vida? Estaríamos numa discussão de vida e morte? —, sucedidas por figuras encapuzadas, fantasmagóricas, monges que parecem repetir a movimentação do início da obra em uma intenção completamente diferente, num tom sombrio. Se antes pensávamos na festa, no casamento, na comunhão, aqui parecemos nos deparar com um sacrifício, de uma das bailarinas desse grupo, deixada no chão e estuprada pelos outros monges seguidamente. Uma criança chora e poderia ser parte da cena, mas trata-se de alguém na platéia. Com a vítima deixada no chão, os monges voltam a dançar nos padrões circulares, e, de outra das placas, escorre uma chuva de moedas douradas: parece que o sacrifício surtiu efeito. Uma perversão da sagração da primavera?

Não há tempo de digestão. A cena é invadida novamente pelos bailarinos em trajes sociais, novamente em fila e de mãos dadas, novamente num aspecto de festa. Novos trajes, nova época, mesma movimentação, mesmos ciclos, surgindo de cima da rampa central e por ela descendo para a cena no contínuo movimento de ir e voltar que progride lentamente. O grupo se dispersa, uma mulher fica pra trás, só para ser perseguida e assediada por um dos homens, até se jogar para trás de uma das rampas, que se move, alinhando-se com a que está ao seu lado. Todas as outras rampas se alinham, formando uma grande rampa numa diagonal pelo palco, e por elas voltam os bailarinos, em novo figurino, para um novo momento, mas mantendo a mesma movimentação.

Indo e vindo, agora eles usam a inclinação dessa grande rampa para repetir a primeira coreografia, num tom festivo, hipnótico, acentuado pela iluminação que, estroboscópica desde o início do espetáculo, apenas agora se mostra uma parte determinante da visão que temos da cena, piscando e ocultando e revelando os seus detalhes — antes a luz piscava mas sua intensidade era tão menor que não afetava muito a penumbra do espaço. Aqui, a coreografia já familiar vai se repetir num crescendo vertiginoso, que nos puxa na direção dessa grande rampa, aproveitada para a movimentação intensa dos bailarinos, e que termina com eles se jogando, um a um, para além dela, e um blackout.

O aspecto de social da obra é curiosamente construído tanto pelo princípio da movimentação dessa dança medieval, como pela música eletrônica e pelo aspecto de rave geral. Em cena, convivem monges encapuzados, convidados de uma festa vestidos com trajes sociais, as possíveis parcas, o sacrifício de uma mulher, o assédio de outra. Se a pesquisa de movimento da coreógrafa se revela e se realiza claramente, sua questão temática, um pouco menos. Trata-se da violência da mulher? São os rituais das sociedades e suas alterações e continuidades? O aspecto cíclico da cultura? Difícil delimitar apenas pelo espetáculo.

Mas, independentemente de poder cercar um tópico, prevalece uma força que vem da obra e que vem da entrega dos intérpretes ao trabalho com a coreógrafa. Eles se permitem a essa experimentação e se entregam à prova. Forte, e mesmo cruel, talvez, mas que é testemunho dessa coreógrafa e de seu histórico. BiT remete a outras obras de seu repertório, a outros aspectos contínuos em sua pesquisa, e desenvolve, a partir de sua continuidade interna e de seu caráter cíclico, se não uma reflexão, uma provocação, marca de muito do estilo de Marin, que há um bom tempo estava ausente dos nossos palcos, e é recebido calorosa e perturbadamente pelo público.

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