Críticas

De fora pra dentro

Janela 43 resolve um tanto dos incômodos da dança pandêmica, numa excelente realização artística e videográfica, que coloca as propostas do GRUA dentro de um prédio, e o público como testemunha que os espia.

Uma resposta pra estafa de ver dança em video durante a pandemia veio com Janela 43, do GRUA – Gentleman de Rua. Fora a curtíssima temporada de estreia, que se compensa com apresentações posteriores ao longo do ano, a obra é tudo que se pode esperar da dança nesse formato, e isso não é dizer pouco.

Janela 43 é um desses trabalhos que consegue captar a dança e o movimento para além do corpo. Esse processo, mesmo no palco, é fundamental, mas, na nossa atual dependência de video, ele tem sido o ponto mais fraco das produções coreográficas que são para a câmera, mas que carecem de verdadeiro diálogo com a câmera. Aqui, o elenco não é vítima do olhar direcionado da lente, mas protagoniza uma relação com ela, transformando a arquitetura em cenário e em elemento gráfico, movente, dançante.

De fora pra dentro, o video nos leva pela fachada com as janelas expostas do Edifico Mirante do Vale, no centro de São Paulo, pra onde entramos pra descobrir os cinco intérpretes no espaço. Se em vários dos trabalhos do GRUA o uso da rua transformada em cena oferece uma oportunidade para a criação a partir do contato com os sujeitos transitando pelo espaço, aqui, não há outros contatos, outros sujeitos, e, no entanto, eles não falham em nos entregar proximidade.

Assistir ao GRUA sempre tem uma questão de carne, uma coisa humana, de contato. E que costuma ser feita em construção inteligente, que não depende da obviedade do convite para se tornar parte da cena. Eles são a cena. E são uma cena que aproxima, que cria identificação quase imediata — ainda que eu não seja uma desses homens, ainda que eu quase nunca use terno. Não é sobre a casca. É uma questão sobre o humano no espaço e em movimento: é esse o jogo que eles conjugam tão bem.

Uma coisa que o grupo já fazia e que aqui se mantêm é o trânsito entre o cotidiano e o artístico-coreográfico. Eles passam com muita naturalidade do movimento do andar pra dança e acrobacias, e o efeito disso é que acabamos misturando ainda mais a situação. É algo como uma realidade paralela: uma leitura de mundo onde parte da expressão da movimentação humana é um tanto mais dançada.

Esse olhar, que antes se estendia pra rua em espaço compartilhado com o público, agora se foca em alguns cômodos e espaços dentro do prédio. A relação com a pandemia e com o isolamento social é presente, é uma leitura possível e lógica, mas ela não é condicional. E isso é parte do que faz o prazer da obra. Ela não está no seu pé te insistindo: veja a pandemia, veja a vida de isolamento. Aqui, a dança sabe que é o foco, e é ele que se mostra, que atravessa e transforma o espaço e as relações.

Sem linearidade, ainda há uma construção poética, quase narrativa. Que lida com a movimentação, mas também com o uso da câmera, e, sobretudo, da luz, elemento fundamental, e fundamentalmente bem trabalhado nesse video. Do uso de luz natural, à iluminação artificial neutra de áreas comuns do prédio, passando pela luz da lanterna do celular, que descobre e revela espaços, e usando uma iluminação que não é tão técnica mas é extremamente cênica, e se faz nas linhas da arquitetura do cômodo principal, o projeto todo é uma jogada de mestre.

A própria proposta coreográfica também reproduz o caminho do video, de fora pra dentro, mostra os sujeitos e suas particularidades, e avança pro íntimo, pro comum, pro compartilhado, pros espaços que borram fronteiras, algumas delas extremamente acentuadas pelo momento atual.

Pela janela 43 a gente espia a vida. Sua relação brutalmente reflexiva sobre dentro e fora, com o horizonte da cidade ao fundo. Todo esse concreto, todas essas luzes, toda essa construção… isso não é só lá fora. Isso é gente. E o lado de dentro também. Eles sabem disso. E quando a porta é fechada na nossa cara, sem a possibilidade de espiar pelo olho mágico, o video te dá vontade de fazer um loop, pular pra fora do prédio, voltar pra câmera aérea, e recomeçar o caminho. De fora pra dentro, pra chegar mais perto.

Janela 43

Grua direção geral: Jorge Garcia, Osmar Zampieri e Willy Helm

Roteiro: Roberto Alencar e Willy Helm

Performers: Fernando Martins, Henrique Lima,  Jerônimo Bittencourt, Jorge Garcia e Vinicius Francês

Cinematografia e finalização: Osmar Zampieri

Trilha sonora orginal: Fernando Martins

Desenho de luz: Henrique Lima

Figurino: João Pimenta

Cenografia: todos

Imagens aéreas: Ricardo Yamamoto

Registros de memórias virtuais e Radio-guerrilha : Emiliano Manso

Produção: Corpo Rastreado