Plano Sequência – Take 2 | Jorge Garcia Companhia de Dança
A direção de câmera e sua manipulação são elementos coreográficos. É essa a certeza que temos com a apresentação da nova obra de Jorge Garcia, que usa uma câmera como gatilho para organizar movimento e composição cênica, no amplo espaço da Casa Das Caldeiras.
Em si, esse espaço todo já influenciaria inevitavelmente a recepção de uma obra nele apresentada. Com a estrutura proposta, isso é elevado a novos patamares. Faz-se um convite, nem sempre aceito, para que o público interaja com o espaço, que tem circulação livre, mas com um centro notável: um músico e sua bateria, responsável pela trilha sonora, em local de destaque, de frente para uma tela que nos mostra o vídeo, capturado pelo elenco em um longo plano sequência ao vivo.
O registro visual se realiza em nossa frente, e mesmo com uma tela proporcionalmente tão pequena, para as dimensões do espaço cênico, acaba dominando o olhar. Frente a ela o público se coloca e para ela o público olha quase que constantemente. No entanto, o que há de mais interessante é aquilo que se realiza performaticamente: é a ação dos bailarinos, e dos bailarinos enquanto técnicos de captação, bem como enquanto facilitadores dessa captação — agindo como trilhos, gruas, elevadores e etc — que cria o principal efeito visual e coreográfico do espetáculo.
Sublinhado, um tom político, anunciado claramente no prólogo da obra por um texto, que discute o final do fomento à dança como ele era no momento em que esse projeto foi viabilizado. O modo como isso se transfere para a obra já é toda uma outra historia. Para além de alguns signos marcados, como os riscos pelo corpo, dividindo-os em duas partes (seria isso uma identificação de um antes e um depois?) é difícil entender como a obra dialoga com esse tema anunciado em seu inicio.
Para além da clara e eficiente compreensão e uso do espaço, que se desdobra e se revela para o público, talvez a temática esteja na própria noção que norteia a obra, o plano sequência e sua continuidade. No entanto, essa continuidade é segmentada em um prólogo mais três atos, e em tomadas de aproximação da câmera que se fecha em um todo preto — ali, mesmo que o plano seja contínuo, entendem-se interrupções possíveis.
A ação dos bailarinos enquanto técnicos de câmera é algo que em si já garante o interesse da obra. O que se questiona é realmente esse desdobramento temático que sobre ela se impõe, numa resolução menos clara. Quando o tema é tão declarado, ele passa a ser buscado, questionado, confrontado pelo público, e nem sempre encontrado, o que enfraquece a obra.
Também sao complicadores a distância entre público e performers. Ainda que eles estejam tão próximos, literalmente circulando no meio de nos, há algo, seja na atitude, na abordagem, ou na constituição deles, que dificulta notavelmente a aproximação, o entendimento do público como parte de um grupo ao qual eles pertençam, que não se perfaz: estamos no mesmo espaço, mas claramente, mesmo com uma cena inicial de integração, somos um outro.
A percepção desse outro se instaura porque a residência dos bailarinos nesse espaço os tornou proprietários, parte da cenografia, e nós somos inevitavelmente apenas convidados ali. Não conhecemos esses lugares, às vezes escondidos, às vezes discretos do espaço, e só os conheceremos pelo intermedio da câmera, que funciona como um olho, mas que, tomada por efeitos não naturais, se afirma como um olho artificial. Para além disso, a obra, ao se especificar, se restringe: sua adaptação para outros espaços não é viável — pode ser mantido um protocolo de trabalho, mas dificilmente uma realização cênica.
Não há grandes problemas com a estratégia proposta e seu efeito de separação dos intérpretes e da plateia. O próprio cinema, linguagem-inspiração da obra, tem uma estrutura de alienamento, uma separação fundamental e formativa entre seus realizadores e seu público. Porém, nesse sentido, a balança pesa para o lado do vídeo, e sente-se falta da comunhão mais característica das obras das artes da cena. Escondidos pelo espaço, esses corpos fogem e escapam de nós. No vídeo são recuperados, mas aí estamos numa tela tão pequena que a distância parece ainda maior, mesmo quando eles são apresentados continuamente, nesse longo plano sequência.