Críticas

Sonho distorcido em sobreposição

A estreia surrealista da Companhia de Danças de Diadema acumula imagens e possibilidades de leitura, em universos individuais completos desenvolvidos pelos intérpretes.

Em processo desde 2018, a nova criação da Companhia de Danças de Diadema, SCinestesia, tem cara de uma reflexão sobre a pandemia, mas suas raízes são bem anteriores. Inspirada em um filme curta-metragem, a obra reflete sobre personagens em um único espaço, vivendo e transformando o cotidiano em algo como um sonho surrealista.

O surrealismo é matéria complicada para o palco, e apesar da estreia presencial restrita para convidados, o resultado principal da obra é realmente um trabalho de video. Na tela, adicionam-se camadas fundamentais para o retrato dessa proposta de distorção da mente e da ação. A sobreposição de imagens, o choque entre os ângulos captados pelas câmeras e a manipulação da edição, em cores, velocidades e formas de ver, ajudam a construir essa proposta complexa e de muito conteúdo.

Nesse longo processo, os dez bailarinos do elenco da Cia trabalharam a partir da inspiração do filme para pesquisar, cada um, o que seria a sua personagem, e a sua ligação com o real. Cada uma das criaturas que vemos em cena, de forma quase que sempre isolada — eles só interagem em ocasiões que também se parecem com a sobreposição das câmeras — é completamente auto-realizada, dentro de um micro-universo todo pessoal.

É como se cada um dos intérpretes existisse independentemente na obra. Ou ainda como se tivéssemos dez pontos possíveis para a leitura do todo. E que a dramaturgia que fazemos dela funciona como um sonho, em que um ponto puxa outro, sem tanta lógica ou estratégia.

Tomado de objetos, o palco, inicialmente parecendo todo desconstruído, espalhado, aos pedaços, vai se reagrupando. Pedaços de madeira perdidos viram as pernas de uma mesa. De ponta cabeça, a mesa parece que vira cama. Depois, em sua posição direita, vira abrigo, debaixo da qual é possível se esconder. Significar, ressignificar, desconstruir, reconstruir, são os processos que regem SCinestesia.

O desafio proposto ao público é abrir mão da lógica. Aqueles que forem muito afeitos à ordem podem se apegar em alguns aspectos que se repetem, especialmente uma narrativa com sapatos que são arremessados ao palco, e que dá um tanto de fluxo e continuidade pra ação. Mas, se você aceitar o convite, a ideia parece ser realmente se deixar se perder, e seguir o fluxo.

A pesquisa da construção de cada um dos núcleos individuais vem de uma parceria entre a diretora e coreógrafa da companhia, Ana Bottosso, e o dramaturgo Matteo Bonfitto, que orienta o trabalho do elenco na proposição e elaboração de uma realidade que parece algo de paralelo: ela carrega signos e símbolos do real, facilmente identificados, mas, como num sonho, o real se desestrutura na frente nos olhos e cria novas percepções pra si.

Nesse sentido, a obra é uma ótima metáfora para a pandemia e o momento atual do mundo. Não porque ela parte da pesquisa do isolamento e do indivíduo, mas porque seu resultado lida com os efeitos da transformação das coisas às quais somos habituados. Esses últimos anos nos mostraram, intensamente, que quase tudo aquilo que consideramos sólido, contínuo, garantido, constante, na verdade é sujeito a impactos e desestruturações que nem conseguimos imaginar. A obra é atual não porque ela nos aponta — como repetidamente tanta arte pandêmica tem feito — o que é a pandemia, e como vivemos no momento, mas porque seus assuntos e seus efeitos dialogam com a nossa vida direta e indiretamente.

É um trabalho, de certo modo, quase que premonitório, porque propôs essas reflexões anos antes de imaginarmos essa possibilidade para o mundo. Mas seu sucesso não é a adivinhação. Pelo contrário, o que o valoriza é justamente a continuidade: a decisão de continuar produzindo essa proposta, e apostando no sonho surrealista.

O trabalho da Cia de Danças de Diadema tem essa marca de investimento na pesquisa continuada, independente de qual seja seu assunto. Aqui, como num sonho, essa continuidade vai sendo transformada, e a transformação lhe faz bem. Se a gente se entrega a essa proposta, é possível que a gente, também, enquanto público, saia dessa obra transformado, ou até transtornado. O surrealismo tem esse tipo de risco, e é justo que isso contagie o público.

O mais interessante é como esse sistema contagia a própria obra. O excesso de efeitos multiplica os possíveis pontos de atenção. Cada assistência te oferece novas leituras das sobreposições. Mais que isso, a própria companhia tem investido nessas novas leituras. Se agora temos uma versão em video, registrada, em princípio inalterável, antes tivemos a estreia presencial, num palco tradicional, mas intencionada pra um palco de três frentes. O que já oferece outras proximidades e dinâmicas. 

Antes, ainda, uma outra versão em video foi transmitida em live pela companhia. Outra produção, gravada, mas em espaço aberto, foi produzida pro Circuito Sesc de Artes. E outras tantas re-leituras serão possíveis, ao ponto em que em algum momento, falaremos de SCinestesia como se fosse um sonho compartilhado: sem uma versão definitiva, nem uma definição limitadora, e a obra será um efeito do conjunto de suas leituras. O processo surrealista de colagem vai se expandido do tecido da obra pra experiência que temos com ela, e depois voltando pra ela, e dela de volta pro público, em troca e acúmulo constantes, como se sonhássemos junto da Cia de Danças de Diadema.

SCinestesia – Companhia de Danças de Diadema

Direção geral e concepção coreográfica: Ana Bottosso

Dramaturgia cênica: Ana Bottosso e Matteo Bonfitto

Assistência de direção e produção administrativa: Ton Carbones

Assistência de coreografia: Carolini Piovani

Concepção musical: Luciano Sallun

Desenho de luz: Alexandre Zullu e Ana Bottosso

Operação de luz: Alexandre Zullu

Sonoplastia: Jehn Sales

Cenografia e adereços cênicos: Júlio Dojcsar

Figurinos: Bruna Recchia

Confecção de Figurinos: Zezé de Castro

Art designer: Tono Guimarães

Assistência de produção e e-flyer: Jehn Sales

Professores de dança clássica: Márcio Rongetti e Paulo Vinícius

Professores de dança moderna: Reinaldo Soares

Professores de dança contemporânea: Ana Bottosso e Ton Carbones

Condicionamento físico:Carolini Piovani

Orientação em yoga: Daniele Santos

Intérpretes colaboradores: Carlos Veloso,Carolini Piovani, Daniele Santos, Danielle Rodrigues, Guilherme Nunes, Júlia Brandão, Leonardo Carvajal, Thaís Lima, Ton Carbones e Zezinho Alves