Críticas

O desdobramento como revelação

O reflexo — aquele outro que é um desdobramento de si — é o tema central de “EU por detrás de MIM”, que a Cia de Danças de Diadema apresentou numa versão sutilmente encurtada no MASP, na segunda noite da programação da Semana Paulista de Dança.

Reduzir uma obra, seja por vontade ou por questões práticas — de espaço, de evento, da ocasião de apresentação — é sempre um risco. Um espetáculo é como um tecido: o que o sustenta é a trama de seus fios. Nem sempre é possível cortar, nem sempre é possível tirar uma de suas partes, sem fazer o todo desfiar e se perder.

Mas a arte é matéria viva, que se reconstrói, se reajusta, e se atualiza. É por isso que versões encurtadas abrem um espaço ótimo para a reflexão sobre o essencial. Sobre aquilo que precisa ser dito para que não se perca esse sentido. E quando essa construção é alcançada, costumamos encontrar versões mais densas, mais abastadas, mais sintéticas das obras.

Esse tipo de formação só é possível quando a obra tem pensamento e propostas consistentes. Nesse sentido, “EU por detrás de MIM” é um prato cheio. Estreada em 2017, a obra estava em preparo desde 2014. Misturando uma referência à exposição “Seu Corpo Na Obra”, de Olafur Eliasson na Pinacoteca de São Paulo (2012), e o conto “O Espelho”, centro das “Primeiras Estórias” de Guimarães Rosa, encontramos o espaço para falar de identidade e do reconhecimento a partir do ato de se olhar e se procurar num espelho.

A mensagem que a coreógrafa Ana Bottosso transmite é a da multiplicidade das individualidades, que é tratada ao longo da obra por processos de espelhamento de movimento, mas também por estruturas de diferenciação dentro da repetição. Na coreografia vemos os bailarinos se desdobrarem, numa atividade constante de identificação de quem sejam eles próprios, quem sejam seus desdobramentos, e quem sejam os outros.

No começo da obra, uma sequencia de breves blackouts já anuncia a questão da repetição e dos desdobramentos, e a cada vez que enxergamos a cena, há algo que continua e algo que nela se altera. Mas tratam-se de alterações tão bem marcadas que pontuá-las fica difícil. Tentamos seguir a quantidade de bailarinos que, numa linha, vai aumentando. E, de repente, há outros bailarinos ao fundo ou à frente do palco. Na luz seguinte, a linha continua, mas já não sabemos quantos eram e quantos são agora, nem se os outros se moveram, se trocaram de lugar, ou se permanecem parados.

O desdobramento se acentua em construções de “duos” que precisam ser dançados com um terceiro elemento, e outras tantas cenas em que vemos mais bailarinos completando a movimentação de um só corpo, desdobrado coreograficamente em múltiplas distorções.
Especialmente positiva é a realização do elenco. Com a obra agora madura, já muito dançada e reconhecida por suas qualidades, a companhia consegue manter aquilo que na estreia desse trabalho já era um trunfo, seu equilíbrio entre os adjetivos “jovem” e “experiente”. “Experiente” por uma questão de maestria, de domínio. “Jovem” por um sentido de frescor.

Frescor é algo que se perde fácil em espetáculos, especialmente após alguns anos se dançando a mesma coreografia. Mas aqui, ele vem presente como se ainda estivéssemos na estreia, porém acompanhado do bom amadurecimento do espetáculo, que já se limpou de alguns pequenos entraves, visíveis em sua primeira proposta.

Nessa versão, a única coisa ainda a atrapalhar o trabalho é o figurino da maior parte da obra, ternos oversized prateados, num tecido reflexivo que alimenta a imagem do espelhamento, mas mostra cada defeito de costura, e o desajuste geral das peças, como algo impróprio para a movimentação em cena.

Mais para o fim da obra, passamos a ver mais dos corpos dos bailarinos, o que soluciona o aspecto robótico-futurista da roupa com um teor de humanidade que, em outros aspetos, transborda no espetáculo. De certa forma, o trunfo de “EU por detrás de MIM” é justamente conseguir ultrapassar a rigidez do espelho para chegar àquilo que se reflete no espelho: o indivíduo, e sua busca por si mesmo.

Sem recorrer a uma adaptação, o espetáculo consegue transportar para a cena o processo da experiência esotérica que é apresentada por Guimarães Rosa em seu conto, em que um narrador não identificado conversa com um leitor quase como se conversasse consigo mesmo, enquanto busca, dentro do espelho, seu verdadeiro eu.

O processo é complexo, demandando o esforço por vezes doloroso de se despir de sua própria identidade, num procedimento entre o religioso e o caótico, de imitação e despojamento, que também se replica na coreografia de Bottosso. Há algo como uma esperança, uma iluminação final e reveladora, mas ela chega de um processo tão intenso, que nos apegamos mais ao desdobramento do que à revelação, que dura um só instante, mas permite, nesse instante, um vislumbre do verdadeiro eu: o eu por detrás de mim.

* A temporada de estreia de “EU por detrás de MIM” foi criticada no da Quarta Parede em 2017. Trechos da crítica original foram usados na construção deste novo texto.