Críticas

Dança Doente | Demolition Incorporada

“De que padece a dança da Bienal? (Dança Doente)”, escrita para o Criticatividade 

 

Marcelo Evelin apresenta sua obra como vinda do livro de Hijikata Tatsumi, “A Dançarina Doente”. Porém, a referência que nos é apresentada se limita ao título, e àquilo que ele ouviu falar da obra: ainda sem tradução, Evelin nunca chegou a ler o texto, como nos diz no programa. Da ideia de doente, o coreógrafo trabalha o sintoma, aquilo que o paciente pode declarar dos estados alterados de seu corpo, e o mistura com o questionamento sobre a dança, aquilo que ela seja e possa fazer.

Contorcionista, colapsante e atrofiada, a coreografia de Evelin compõe uma dança de fracasso e de escassez: corpos deixando de ser. Entre o degenerativo, ou talvez o regressivo, em cena, esses corpos estão equecendo e perdendo capacidades, ou  talvez refletindo algo que nunca aprenderam.

O efeito geral é ampliado por um notável desnível entre as qualidades corporais do elenco, irregular não de uma forma autoral ou pessoal, mas descuidada, que soa como amadorismo, como reflexo de um experimentalismo aparentemente despropositado, e gratuito, que não alimenta o público, e apenas trata de si mesmo.

De que padece essa dança? — a pergunta vai além do escopo da obra. Focando no sintoma e em sua percepção pelo indivíduo, o coreógrafo parece querer fugir tanto do diagnóstico quanto do tratamento: aqui, não interessa evidenciar a origem do problema e as possibilidades de abordagem do mesmo, mas insistir em sua existência. Algo um tanto quanto auto-centrado, tenta impactar, mas carece de conteúdo real para isso.

Cria-se, então, uma fantasia sintomática. E é dentro dela, que trabalha o elenco. A estrutura do palco é interessante, com uma separação de áreas da cena — uma delas com um pano que cobre os bailarinos do peito para cima, tornando a visão que deles temos quando nessa área, uma visão parcial, condizente com esse percurso médico, com essa proposta de segmentação.

A divisão do palco se faz por esse pano, mas também pela luz e por faixas de linóleo claro que contrastam com o palco preto. Por elas passam, entre desfile e procissão, bailarinos incorporados desse sabe-se-lá-o-quê. E, aparentemente, não interessa saber. Ainda que o sintoma seja algo que aponta para uma causa e um efeito, aqui limita-se o interesse no discurso e exibição de si: eu e meus sintomas, minha dança e seus sintomas.

Mais ao fim da obra, uma cena grotesca, entre sexo e briga de galos, divide a plateia entre a perturbação e o riso nervoso, seguida, enfim, por uma longa (e tediosa) caminhada lenta, ao atravessar todo o palco, com um som repetitivo de um só instrumento soando. De certa forma, serve para apaziguar os ânimos depois da cena anterior, mas, tristemente, nos coloca de volta na letargia geral da obra, causada — e não haveria de ser outro o motivo — por seu conjunto de sintomas

A ideia de síndrome como conjunto de sintomas, ou mesmo de um transtorno, pela forma como esses sintomas nos são apresentados no palco, reflete esse aspecto psico-somático da obra de Evelin. No todo, ela causa um impacto, mas adiciona pouco a uma Bienal que já padecia da mesma sintomática coreograficamente desenvolvida aqui: repetitiva, insistente, pouco variável, de um só tempo — extendido, alongado.

O efeito, simultaneamente, é um desvio de interesse do público, e uma afirmação identitária de alguns artistas: algo que cativa um pequeno grupo de iniciados, mas, no geral, desligado e despreocupado com os demais. Voltada, não exatamente à dança, mas ao que certos artistas parecem entender como um direito (quase divino) de serem vistos. Formas solipsistas, de danças para si: a doença acomete a obra, e se espalha para a programação como um todo.

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