Críticas

Lecuona | Grupo Corpo

Lecuona é uma obra estranha para o Grupo Corpo. Apesar de seu reconhecido sucesso de público, ela apresenta uma série de escolhas e estruturas que a separam do conjunto da obra da notável companhia mineira. Como essa estranheza dialoga com o repertório e com a apreciação que Lecuona tem são as questões discutidas na crítica do Da Quarta Parede.

Lecuona é uma obra estranha para o Grupo Corpo. Primeiramente porque ela rompe com a tradição do Corpo de criar obras a partir de trilhas sonoras originais, e assinadas por compositores brasileiros, colocando em cena doze músicas do cubano Ernesto Lecuona, que empresta o nome à coreografia. Em segundo lugar, porque a obra se apoia na construção de duos e, mais que isso, duos que remetem à dança de salão, com toda a influência melódica da obra do compositor, possuindo apenas uma formação de grupo ao longo de toda a coreografia — uma valsa final, com os bailarinos de branco, e o fundo do palco, antes inteiramente preto, tomado por espelhos.

Esse tom kitsch se apresenta como uma imagem do passado, impressão aumentada pela estrutura da cena, que coloca os bailarinos no palco por detrás de uma tela, deixando-os com a impressão de serem projeções, fotografias, cuja progressão acompanhamos como se numa tarde vendo slides fotográficos e antigos álbuns de família. As histórias contadas, são, de certa forma, banais. Romances sem profundidade, apoiados pelas letras melosas, dolorosas e dramáticas das músicas da primeira metade do século XX.

O que há de interessante na obra é a chance de variabilidade para os intérpretes. Cada um dos duos, associado a uma música específica e a uma cor, apresentada pelos figurinos, oferece uma diferente possibilidade de interpretação. Mas essas figuras em cena, nos breves momentos que têm para se realizar, não conseguem se desenvolver muito a partir apenas da movimentação, dependendo intensamente das letras de música para a construção de entendimentos. Essa estrutura em si também é bastante incomum para o Corpo, que costuma nos apresentar obras que têm um tema fortemente desenvolvido e trabalhado em cena — e mesmo quando contam com as músicas para sua realização plena, parecem ser suportados, nos casos de maior sucesso da companhia, pelo movimento específico de Pederneiras em sua infusão com o assunto específico de cada obra.

Aqui, o que há de bastante específico são as possibilidades de técnicas de partnering, os carregamentos, levantamentos, sustentações, que se constróem em referência, tanto ao trabalho especificamente reconhecível do Corpo, como às diversas estruturas de danças de salão. Uma investigação que é interessante e que tem um efeito positivamente percebido, mas que, no formato dado, é bem mais rasa do que costumamos perceber nos trabalhos da companhia mineira.

A recepção de Lecuona é um fator interessante para se levar em conta. Nos 12 anos desde sua estréia, a coreografia já esteve presente em múltiplas temporadas. Em São Paulo, a mais recente antes da atual de 2016 foi a de 35 anos da companhia, em que o Grupo Corpo abriu uma votação para que o público escolhesse uma obra para rodar o país. Ou seja, há apenas 6 anos Lecuona estava por aqui e não pela primeira vez. Em si, essa rapidez de reciclagem e recuperação é também um choque. A partir do anúncio da Temporada de Dança 2016 do teatro Alfa, no começo do ano, esperávamos assistir à parceria de 21 (obra de 1992) com a última estreia da companhia, Dança Sinfônica (2015), ambas com música de Marco Antonio Guimarães. Ou, talvez, uma outra obra do repertório com mais relação corporal com Dança Sinfônica e o trabalho do Corpo como um todo.

Poderia se dizer que essa mistura funciona justamente pela diferenciação entre as obras, mas não é o caso, porque o programa não nos mostra dois lados do trabalho do Corpo. Ele mostra o trabalho do Corpo na obra mais recente — que reflete todo um histórico e uma tendência estilística —, e esse exemplo extra, inesperado, de Lecuona. E, ainda sim, a recepção do público para a apenas razoável Lecuona — que não está em nenhum patamar de grandeza do histórico da companhia — é surpreendente. Talvez mesmo até mais positiva do que a recepção de Dança Sinfônica. Mas pela razão pontual de que Lecuona, em um outro aspecto que foge dos padrões que nos acostumamos a encontrar no Corpo, é uma obra simplista.

Agrada porque é palatável, facilmente digerível. Tem a resposta imediata do melodrama das músicas, das roupas compreensíveis, da estrutura do duo, do apelo visual da valsa final. Em última instância, consegue dialogar sem nenhum problema com uma sociedade habituada à dança em estilo “dança dos famosos”. Se guiar pelo mínimo denominador comum parece um pouco decepcionante, sobretudo quando nesse pareamento com a obra feita para celebrar os 40 anos da companhia, que carrega tanto de história, de trabalho e de dedicação.

Talvez seja esse o maior problema com Lecuona, de uma perspectiva analítica. Não se trata de uma obra ruim. Não se trata, em nenhuma instância, de uma obra mal executada. O nível do trabalho do coreógrafo, dos bailarinos, e de toda a equipe, continua demonstrando a exuberância e excelência de sempre. Honestamente, é preciso mesmo observar que há dois ou três entre os duos que são brilhantes, além de brilhantemente executados. Mas há algo que falta nessa obra. Uma espinha, uma coluna. Uma sustentação que aponte para toda a profundidade e o cuidado que são empregados nas longas construções das obras do Corpo, e que, nesse caso, não são tão perceptíveis.

Lecuona é uma obra estranha para o Grupo Corpo. Não porque seja uma obra simples. A simplicidade é algo extremamente trabalhoso. Outras propostas da companhia, como, por exemplo, Sem Mim (2011), também não são de uma complexidade assombrosa. Mas, ao mesmo tempo, são de simplicidades que se articulam com uma profundidade de temas e de trabalho que mostram o seu esforço, a sua construção, e valorizam os seus resultados. E que, em Lecuona, ainda que mantenham o espetáculo, parecem mais rasas — jogo de espelhos e de luzes, que fascina a vista, mas não muito mais que isso.

 

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