Críticas

Gira / Bach | Grupo Corpo

 

“Entre o céu e o chão, caminhos dos corpos do Corpo” – escrito para o Criticatividade

 

Em 2015, comemorando os 40 anos da companhia, o Grupo Corpo estreiou “Dança Sinfônica”, de seu coreógrafo residente, Rodrigo Pederneiras. A obra, repleta de referências a outros trabalhos anteriores da companhia, mantinha a aura aérea, leve, expansiva, a mesma que domina a maior parte das obras do repertório dessa companhia mineira. Agora, dois anos depois, uma nova estreia da companhia, cujo o resultado bate numa tecla completamente diferente: para baixo, pesando, para o chão.

“Gira” discute Exu, a partir da sugestão proposta pelo grupo Metá Metá, responsável pela trilha sonora da obra. E, sobretudo nesse grupo cujos acentos e formas de articular o movimento em coreografia já se tornaram tão características, quase tradicionais, o que encontramos nessa nova criação é algo que surpreende, por ter elementos novos. Mas trata-se de um novo que mantém, sim, uma referência — e uma deferência — ao passado: não um outro Corpo, mas um Corpo diferente.

Sempre inspirado pelas propostas da trilha sonora, o coreógrafo busca formas de movimentação que se articulam com aquilo que reconhecemos em seus trabalhos passados: ali estão seus giros, a força dos contra-tempos e o uso intenso das pernas, da sustentação dos quadris. “Gira”, porém, traz outros elementos para a mistura, que se resume, muito sinteticamente, por três elementos que aparecem em uma das primeiras faixas da trilha sonora, e que nos acompanham ao longo da obra: chão, céu, caos.

É justo esperar, então, uma obra de contrastes — entre o céu e o chão — e de contrastes violentos e caóticos. Mas não há na cena, de fato, formas de caos. A organização quase sistemática, geométrica dos corpos do elenco do Corpo, e de seus posicionamentos — no espaço, uns entre os outros, e mesmo nas cenas de solos — determina uma percepção de controle e de auto-controle. Pode ser essa a resposta encontrada para coreografar esse espaço sincrético, espiritual e limítrofe, que dialoga — desde a composição cenográfica de Paulo Pederneiras e da luz que ele assina junto de Gabriel Pederneiras — com a penumbra, com o ver, o esconder, e o revelar.

O elenco está o tempo todo em cena, sentados em cadeiras, mas cobertos por véus pretos, de onde saem para dançar e para onde voltam quando não estão dançando. Essas figuras rígidas, sombrias, contrastam com a clareza das saias brancas — do figurino de Freuza Zechmeister —, agitadas pelo movimentos dos corpos, sem precisarem ser incentivadas ao movimento, como se tivessem vida própria. Em “Gira”, nada é forçado: cria-se um espaço do ritual, e nele a dança acontece.

Também é difícil encontrar o céu na coreografia, que elimina quase todos os movimentos aéreos do coreógrafo. Mesmo o tradicional duo lírico que Rodrigo encaixa quase sistematicamente próximo ao meio de suas coreografias, e que em várias obras inclui a bailarina sendo içada para cima do bailarino, aqui é puxado, junto do todo da movimentação da obra, para baixo, em reverência ao chão: todo o plano alto nessa obra é limitado à altura da cintura ou, no máximo dos ombros.

E os ombros são determinantes para a coreografia. Tensionados na frente do torço dos bailarinos, forçam uma leve curvatura da coluna, sempre consciente do peso e da força que atrai para o chão. As quebradas dos quadris são tradicionais no Corpo, mas há aqui novas formas de posicionamento, com as pernas distanciadas, com variações de apoio, que ajudam a construir novos estados corporais. Porém, talvez a mais significativa das mudanças das formas coreográficas de Pederneiras seja o uso dos braços, que, habitualmente lançados, determinantes para a percepção do espaço que ocupa o corpo de cada bailarino, aqui aparecem quase que constantemente presos junto do corpo.

Mãos juntas, mãos na cintura, mãos no ventre, mãos sobre as nádegas, forçam ainda mais o trabalho com os ombros, que são os maiores estimuladores da movimentação em “Gira”. Depois da segunda metade da obra veremos uma estrutura marcante com os braços que se debatem na altura da cabeça dos bailarinos, e ai aparece um uso dos cotovelos para direcionar o movimento. Essa aproximação das extremidades do corpo lembra algumas das criações anteriores da companhia, mas é realmente o trabalho com o chão que aqui identifica as novas formas de criação. Mesmo que haja uma referência reconhecível a obras como “Benguelê” (1998), que também tem cenas marcadas pela presença do peso do corpo e do chão, em “Gira” o chão não é só presente: ele é força magnética que atrai e que prende o corpo. Bom exemplo é um conjunto que cruza a cena, numa caminhada com os corpos levemente curvados para trás, como se almejassem o alto, o céu, mas as pernas permanentemente flexionadas e os pés que quase não se descolam do chão nessa progressão.

Também são notáveis, pela potência e pela força da execução, os dois solos femininos da obra — introspectivos, eles alcançam outros níveis de sugestão e de discussão do tema. Mas o que domina “Gira”, realmente, é a estrutura contagiante dos conjuntos, com os ritmos marcados, tanto na movimentação quanto na trilha, ambos apontando caminhos novos para a companhia, ao mesmo tempo em que sugerem continuidade de seus trabalhos.

Nesse sentido é especialmente interessante que o programa duplo tenha sido apresentado com “Bach”, de 1996, que a companhia não dançava há muito tempo. “Bach” é a obra mais antiga dançada pelo grupo nos últimos anos, e testemunha a cristalização das estruturas que se popularizaram com “21” (1992), e que formam as referências que percebemos quase como hábitos de criação do Corpo.

Aqui, sim, vemos a exploração do céu, com os bailarinos suspensos em canos, pelos quais escorregam, num desenho cênico-coreográfico que ilustra, a um só tempo, o barroco de Bach e o barroco de Minas Gerais. Temos a impressão de que a coreografia é materialização da música emitida por esse órgão, soando quase espectral, e a obra abusa de uma iluminação notável, muitas vezes de contra — invadindo até a platéia — que complementa o sentimento do barroco, do gótico, do espaço entre o sombrio e o iluminado das catedrais.

Aqui, os corpos são hiper-detalhados. Moldados delicadamente, mas em uma grande quantidade de enfeites, que, rebuscados, completam a percepção desse ambiente e dessa sugestão religiosa, de uma natureza completamente distinta de “Gira”. Enquanto “Gira” se faz na simplicidade, “Bach” enche os olhos pelo abuso dos detalhes. Quando, ao final, os bailarinos reaparecem em cena vestidos inteiros de dourado, o lugar do que poderia ser um exagero gratuito é ocupado por uma estrutura de acúmulos que enche os olhos, ocupa os sentidos, e deixa a platéia atônita.

Ainda dentro do caráter do que há de novo dessa temporada, o principal problema com “Bach” foi um problema quase inédito para o Corpo. Talvez pelo peso dessa remontagem, tão distante do elenco atual, concomitantemente a uma criação densa que demanda muito dos bailarinos, “Bach” está menos bem realizado do que a temos registrada. Os bailarinos se esbarram, batem nos canos pendurados, os braços não estão tão bem marcados, mostrando um inesperado despreparo. Inesperado, sobretudo, para uma companhia cuja precisão se tornou, há muito, referência e expectativa.

Importante balizar: não se trata de um despreparo ou de um descuido escandalosos, mas, mesmo que pequenos, são notáveis frente à qualidade constante dos trabalhos do Corpo, normalmente impecavelmente bem ensaiados. Com “Bach” abrindo a noite, ainda que dentro de toda sua potência e impacto, fica uma incerteza acerca de um padrão ao qual já nos habituamos. Mas toda dúvida é esclarecida com a precisão de “Gira”, que nos mostra que “Bach” precisa apenas de mais tempo para se reformatar e adequar aos corpos atuais do Corpo.

No todo, a composição do programa com essas duas obras é inteligente, porque consegue mostrar caminhos do grupo, e colocar em perspectiva formas de discutir experiências estéticas — carregadas de um grande subtom religioso — que levam à estesia, à surpresa, e ao encanto. Por vias completamente distintas, mas não menos importantes. Entre o céu e o chão, nada de caos, mas diversas opções de caminhos, coexistindo em um equilíbrio sutil e — mesmo quando na penumbra — iluminado.

 

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