Críticas

Coragem e uma tentativa de correção

Em 2022, o Grupo Corpo estreiou uma obra que é uma versão refeita de uma obra anterior da companhia. Com um tanto de coragem, ela olha um processo que não eu certo e tenta encontrar novas soluções, em ‘GIL Refazendo’

Tem algo de surpreendente quando uma companhia decide refazer uma obra. Não só ajustar, mas refazer, quase que do zero. Por um lado, isso chama atenção pro erro. Pro “percebemos que não deu certo”. Por outro lado, chama a atenção pra coragem, pra disposição em considerar que apesar de não dar certo, vale a pena insistir.

Foi com essa surpresa que eu recebi a notícia de que o Grupo Corpo estava recriando GIL, de 2019, mudando tudo exceto a trilha sonora original. A nova versão, com novo título, GIL Refazendo, estreiou também na Temporada de Dança do Teatro Alfa. As duas são obras menores no impressionante catálogo do Corpo, e carregam um sintoma de desajuste: são obras de conversa difícil entre suas partes.

Essas partes não são de todo ruins. Na GIL original, tínhamos um cenário que ilustra bem as propostas de simplicidade e elegância que acostumamos encontrar no Grupo Corpo. Enquanto o figurino vistoso trazia algumas das mais bonitas malhas do repertório de Freusa Zechmeister. Não tão resolvida, a movimentação apostava no indivíduo, com um jeito de intensa leveza e despreocupação que parecia carregar o mesmo aspecto easy-listening da trilha, que talvez fosse o maior dos problemas da obra.

Colagem sonora do repertório do homenageado, a trilha de GIL nunca teve de fato um tema, uma história, um fio. Ela só segue, despretenciosa e talvez despropositada. O que sempre marca nos trabalhos do corpo é o ouvido musical de Rodrigo Pederneiras, que encontra formas de mover a música. Mas o que normalmente se lia como uma trilha sonora criada em grandes projetos criativos e colaborativos, aqui parece que só acontece. Sem assunto, sem objetivo, a falta de direcionamento desemboca no título capenga, que não diz nada além de quem a compôs.

Dai a surpresa de que justamente a trilha seja o ponto que se manteve pro processo de recriar GIL. A lição que recebemos enquanto público é valiosa: uma obra é um conjunto de decisões. Ela não é uma só possibilidade, um só encaminhamento. Seus elementos não são obrigatórios. Eles não brotam, não são espontâneos. São produzidos, decididos, criados pelos artistas envolvidos. GIL Refazendo nos mostra de pronto as possibilidades distintas de uma mesma proposta. É uma obra toda outra. Fora a trilha, nada mais parece que fica. Por um outro lado, uma lição mais amarga também fica na boca: nem tudo tem conserto.

GIL Refazendo é um conjunto de elementos um tanto melhor que GIL. Porém, no formato dos programas do Corpo, sempre deliciosamente duplos, assistimos em 2019 GIL junto de Sete ou Oito Peças para um Balé (1994), e GIL Refazendo junto de Onqotô (2005). E ai, na comparação, a própria plateia percebe a diferença de nível das obras. Onqotô foi aplaudido basicamente de cena a cena, e merecidamente: é um conjunto deslumbrante de assunto, trilha, coreografia, visualidades. Tudo converge a um tema, que se faz sensível por todos os sentidos. 

É isso o que falta, tanto pra GIL como pra GIL Refazendo. Assisti a GIL Refazendo três vezes, e continuo perguntando o que ela é, sobre o que ela é: não saber, não entender, é um problema. É genuinamente interessante essa coragem de refazer uma obra, corrigir um processo. E é uma pena que o resultado desse processo não alcance o tipo de desenvolvimento que acostumamos a encontrar no Corpo.

Na obra refeita, o que cresce é um tanto de sentido para o despojamento, que se dá em movimentação — bem mais interessante, ainda que tenha perdido os bons trabalhos de braço da obra original (mas que talvez fossem herança de Gira (2017)), e também no figurino, que dá uma aura pra essa proposta e essa dança. É pena perdermos os figurinos originais, mas eles realmente não caberiam no GIL Refazendo. São escolhas. Refazer quer dizer que mesmo aquilo que era bom no original precisa ser repensado em novo contexto.

Já a cenografia foi dialogar em outros lugares do passado. Do passado recente do Corpo, com a proposta de uma projeção tomando todo o fundo do palco, que remete à estrutura de cenografia de Primavera (2021), mas também a um passado não tão recente assim, porque não é como se cenografia por projeção fosse uma novidade. Projetados, vemos girassóis num video retrocedendo, com a obra começando com eles mortos e voltando até a vida, e ai conectando um pouco com o amarelo que víamos no trabalho original.

A metáfora da ressureição cai de um jeito meio estranho pra uma obra nesse processo de correção, de refeitura. É uma imagem interessante, mas volta pro campo da indeterminação: o que isso nos diz sobre o homenageado, sobre a obra, sobre a coreografia? GIL Refazendo chama a atenção para a aceitação de que alguns processos artísticos não chegam no resultado que os artistas desejariam. E coloca um holofote na coragem necessária para falar dessa situação. Nesse sentido, pode ser um bom processo para o grupo: um tônico de coragem é bem vindo depois de GIL, de Primavera e, agora, de GIL Refazendo.

GIL Refazendo

Coreografia: Rodrigo Pederneiras

Música: Gilberto Gil

Cenografia: Paulo Pederneiras

Figurinos: Freusa Zechmeister

Iluminação: Paulo Pederneiras e  Gabriel Pederneiras

Fotos: José Luiz Pederneiras