Críticas

VeRo | Companhia de Dança Deborah Colker

No ano dos Jogos Olímpicos, Deborah Colker coloca de volta em cena trechos de duas obras do início de sua carreira que carregam uma fisicalidade impressionante, transfigurada em trabalho e pesquisas cênicas que demonstram a essência impactante do seu jeito de fazer arte. VeRo, criticada no Da Quarta Parede, nos lembra que a assinatura da coreógrafa foi calcada cedo em sua carreira, e que o seu lugar permanece um de destaque.

2016 é um ano grande para Deborah Colker. O espetáculo que Colker fez para o Cirque du Soleil, Ovo (2009), reestreia no formato de arena, e a coreógrafa é Diretora de Movimento da cerimônia de abertura dos Jogo Olímpicos do Rio. Momento interessante para a estreia de VeRo, obra em que Colker reúne duas obras do início da companhia, Velox de 1995 e Rota, de 1997. Interessante por motivos que vão muito além da publicidade que o reconhecimento do trabalho de Colker recebe, e se ligam ao início da trajetória da companhia carioca.

Algum tempo, e o reconhecimento da imprensa internacional, foram necessários para que ficassem de lado algumas negativas críticas iniciais daqui ao trabalho de Colker, pontuado como ginástico, como esporte, talvez num mal entendimento da proposta de inspiração esportiva de Velox, talvez numa dificuldade de compreensão da proposta criativa desenvolvida. Agora, em meio a todos os eventos ginásticos e esportivos que cercam seu trabalho, VeRo parece vir como uma forma de resposta, um lembrete de que isso tudo, e com todos os louros, Deborah já fazia nos anos 90, e continua fazendo (muito bem, obrigado).

Velox já fez parte de outra montagem mista, Mix, que a coreógrafa montou para a Bienal de Dança de Lyon de 1996, juntando trechos desse espetáculo a trechos do primeiro da companhia, Vulcão (1994). Aqui, a estratégia repete o uso dos dois atos, o primeiro ocupado com Velox, e o segundo com trechos de Rota. Velox apresenta uma pesquisa de movimento que se inspira em esportes e desenvolve em dança uma referência controversa (a dança e a edução física — o desporto — têm velhas e problemáticas relações), elaborada e desdobrada em múltiplas cenas que ilustram não só o pensamento grandioso, e o inusitado uso do espaço, como também a exploração musical e visual que se tornaram marcas do trabalho da companhia e da criadora.

O que mais seduz em VeRo, vista agora, é a relação que estabelece com as primeiras obras e as mais recentes da companhia. Vindo na sequência de obras como Cruel (2008), Tatyana (2011) e Belle (2014), na superfície encontramos uma quebra — as obras mais recentes carregam o narrativo, o sentimental, o humano; as primeiras obras, reforçam o virtuoso, o físico, o corporal. Mas essa aparente quebra vem de escolhas de temas, das seleções das propostas de cada espetáculo. Uma análise mais a fundo mostra, contrariamente, continuidade: a forma como a Cia faz dança permanece calcada no perfeccionismo da diretora, em sua movimentação informada pelo ballet clássico e transportada para outros estilos, em propostas de criação de cenários e trilhas sonoras grandiosos, que ocupam a platéia e determinam a forma como os bailarinos interagem com o espaço, e que continuam prendendo a atenção e causando surpresa e um intenso reconhecimento. Vemos aqui a assinatura da coreógrafa e dos diversos colaboradores que permanecem junto da companhia.

Através da cenografia de Gringo Cardia, no meio de Velox o palco se verticaliza, em uma parede de escalada de sete metros de altura, onde os bailarinos, se sustentando pelas mãos e pelos pés — e pelos corpos uns dos outros —, formam figuras mais que inesperadas, e que nos forçam a pensar em como aquilo é possível, enquanto procuramos os fios que os sustentam — e que não existem. É nesse instante que Colker faz a sua mágica. É em sua realização que aquilo que poderia ser esporte se faz arte. Os movimentos dos esportes estão presentes, eles servem de um ponto de partida, mas eles são desenvolvidos muito além de suas funções e formas originais. A impressão é a de que a diretora coloca seus bailarinos em contatos com esses novos espaços, essas novas propostas, e inicia um trabalho de exploração incessante, sempre se questionando o que é possível fazer nesse espaço e com esse espaço, e, quando todas as possibilidades forem esgotadas, ela te pergunta de novo: o que mais é possível fazer?

Nesse mais reside o ímpeto artístico. As intervenções cenográficas transformam o espaço, e o desenvolvimento coreográfico transforma o movimento. Não se trata de escalar, se trata de deixar o público num instante de suspensão. No esporte, esperamos o ponto, a nota, o gol, a vitória, a conquista. Na arte, esperamos algo que vai além, que tem um tanto de deslumbre — o que não falta em VeRo — e tem um tanto de inesperado, de surpreendente, que muda o nosso dia-a-dia e nos faz repensar mesmo as coisas mais simples. Repensamos o espaço, mas repensamos também o movimento. Quando a coreógrafa ultrapassa os movimentos dos jogadores, ela invade o movimento dos objetos, e os bailarinos são também a bola. Há algo de profundamente investigativo no pensamento da coreógrafa, algo que se mostra ao longo de sua trajetória e que VeRo mantém de uma forma relevante por apontar tanto o passado quanto a continuidade de seu trabalho.

No segundo ato, trechos de Rota transformam a cena num espaço industrial, dominado por uma roda que força a circularidade dos movimentos, tanto nas relações que se estabelecem com a roda que se coloca em cena, quanto nas relações que se estabelecem no chão, e nas escadas que ladeiam o palco. Para além do circular, uma noção permanente de sentido/ direção: para onde vamos e como vamos, não necessariamente num ponto de vista cosmológico, mas numa dominância mais terrena: como chegamos em algum lugar, como saímos desse lugar, mas também, como nos prendemos em círculos que se repetem, e como rompemos esses padrões.

Aqui, vemos bailarinos sustentados — pela própria força, pela força dos outros e pelas forças que vêm dos movimentos e dos suportes —, numa aula de física intrigante, que nos faz reconsiderar o equilíbrio, o contrapeso, a gravidade. Entre astronautas e parques de diversão, encontramos um lugar único, ocupado pelos bailarinos da companhia. Treinados e ensaiados com uma precisão invejável, misturam a expressividade com o apuro técnico que só pode ser resultado de um trabalho intenso e contínuo, apontando para o sucesso de mais uma colaboração, com a assistente de direção, de coreografia e ensaiadora Jacqueline Motta.

VeRo termina com um daqueles momentos icônicos, que dura apenas um instante, mas que parece se prolongar indefinidamente em nossas memórias: depois de tantas explorações da roda, subidas e descidas, e incontáveis giros, oito bailarinos se prendem pelas mãos e pelos joelhos na estrutura, que continua girando. O movimento deles acompanha o deslocamento da roda, enquanto eles permanecem encolhidos nessa posição, girando e girando. Uma valsa de Strauss invade a cena e a imagem se completa: uma roda gigante. Novamente, o passo além da pesquisa de Colker se demonstra: quando os bailarinos tiverem feito tudo que podem com a roda, eles se tornam parte da roda, a transformam em outra coisa, um todo que é maior do que a soma de suas partes, e que depõe a inspiração e o desejo criadores.

A inspiração que transpassa nesse trabalho, mesmo quando é explicitamente esportiva, não constrói em nenhum momento a impressão de esporte. Nem mesmo no sentido da problemática e repetida associação que constrói termos — gratuitos e mal cuidados) —como “futebol-arte”. Aqui, o mais perto disso que podemos chegar coloca não uma associação, mas uma inversão: se chamamos de ginástica-artística aquela modalidalide que carrega em si alguns princípios de arte, mas é essencialmente ginástica, o que temos em cena com a Deborah Colker é, no máximo, uma forma de Arte ginástica. Arte, o substantivo e em maiúscula, determina o que ela está fazendo, ginástica vem adjetivar, dando uma das características que percebemos naquela forma de arte. Esse adjetivo não é em nenhum sentido denegridor, e aqui descreve apuro e precisão técnicos, e mostra que mesmo que exista uma parcela de ginástica (no sentido da fisicalidade) nesse tipo de trabalho, sua essência, e sua maior constituição, é de espetáculo, é de arte. E da melhor qualidade.

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