Do esbarrão à poesia
A força do encontro, às vezes através de um esbarrão que te bate no peito, move a Cia Gente por questões delicadas, trabalhadas na extrema poesia do Ato Nº2 de “Fio do Meio”.
Na cidade tão cheia, na rua apertada, no transporte lotado, o corpo esbarra. Não é exatamente novidade, porque o corpo esbarra há muito tempo, em graus distintos de desatenção, desinteresse, e desconsideração. Num mundo de crise sanitária, esbarrar tem outras preocupações, reconstrói medos guardados e refaz outros tantos — medos e preconceitos — que nunca de fato desapareceram dos espaços.
O esbarrão é o ponto de partida da continuidade da pesquisa de “Fio do Meio”, da Cia Gente, que agora chega em seu segundo ato, “A travessia desacreditada do esbarrão”, estreado dentro da programação do 15º Visões Urbanas – Festival Internacional de Dança em Paisagens Urbanas.
A chuva que acompanhou o primeiro dia da programação esbarra brutalmente nos planos do evento, e parte da programação, incluindo a apresentação da Cia Gente, foi movida pra dentro do CRD – Centro de Referência da Dança, entregando outras possibilidades e outros desafios para as obras, que precisaram buscar suas referências de construção de espaço público em outras estruturas.
No segundo ato de “Fio do Meio”, o desafio de Salasar Jr. e Tácio Fidélis passa a ser na construção do sentido de proximidade que essa obra e essa proposta nos pedem. Com o público sentado no chão em torno dos bailarinos, a dinâmica da rua, do olho na altura do olho, do ombro que bate no ombro do lado, já é de princípio quebrada. O trabalho energético que eles constróem é o trunfo que faz a obra funcionar tão bem, mesmo fora de suas condições ideais. O corpo em cena é o corpo que descobre o espaço e se dá conta de que não está sozinho, que precisa lidar com o outro, e toda a carga de questões e problemas que são levantados pela vida em conjunto.
Aqui, esbarrar é físico, é corpo no encontro de corpo, às vezes por acidente, às vezes por intenção. Mas esbarrar também é social. O que significa a proximidade e o encontro com um corpo, com este corpo, com estes corpos, com estes sujeitos. Do esbarrão acidental no metrô, ao esbarrão provocativo da rua, até o enfrentamento violento e de todos os preconceitos que são colocados em jogo no encontro entre corpos, a Cia Gente fala desses bailarinos, de como esses corpos se encontram, e de como a cidade os encontra, questiona e desconfia.
Quais são os medos que o encontro com o outro levanta? Quais são os medos que o encontro com esse outro levanta? Dois artistas negros da maior potência colocam em jogo a força, a técnica e as possibilidades do corpo, num questionamento que discute o que é preciso pra fazer arte. Aos nossos ouvidos, a pergunta quase que imediatamente se amplia: o que eles precisam fazer, pra que aquilo que eles fazem seja considerado arte?
Quais as muitas formas de arte que foram diminuídas e desconsideradas? Quais os artistas que são diminuídos e desconsiderados? Sobre que corpos se estende o medo? Em que ocasião o esbarrão deixa de ser visto como acidente e passa a ser ameaça? E quais são as muitas violências a que esses corpos precisam se sujeitar pra provar — inocência, existência, arte?
O encontro-esbarrão entre eles é propulsor de um encontro-esbarrão com o público, que mesmo nessa estrutura distante do ideal e da rua, mostra a força e a qualidade artística dos bailarinos, que constróem naquele espaço, tão restrito, o que se assiste como se fosse uma enorme manifestação dominando a rua.
Todos os enfrentamentos de preconceitos que eles escancaram, são transmitidos e contagiam as pessoas, que marcham e discutem o corpo preto falando inglês, o corpo preto fazendo arte, o corpo preto ocupando a rua, o corpo preto tido como ameaça. Ficam à vista os problemáticos valores da sociedade, em uma discussão que é fundamental para qualquer espaço, mas que precisa se montar e se mostrar na rua. Estávamos ali, abrigados da chuva debaixo do viaduto do chá, a passos da escadaria do Theatro Municipal, lugar onde esse questionamento precisa ser levado. Lugar onde esses artistas precisam do espaço pra falar das suas questões.
Bem guiada pela direção de Paulo Emílio Azevedo, que também assina a criação da obra, a Cia Gente trabalha sempre pela potência. É desses grupos que não dá pra assistir e ser indiferente. Seus temas e assuntos são fundamentais, falam do que precisa ser falado. Mas suas obras trabalham a dança, a construção estética e a arte em realizações notáveis. De fato, neste contexto específico, não há questão: nesse espaço um pouco mais seguro (mesmo que não resolvido) da dança e dos festivais de arte, não há dúvida do tamanho desses artistas.
Mas quando artistas desse tamanho nos contam de seus enfrentamentos, de como esbarram na própria consideração do que é pra eles fazer arte, não tem como não ouvir a percepção da falha do sistema. Eles nos dizem que pra fazer arte, a gente precisa correr, a gente precisa dizer, a gente precisa fazer. Um instante da obra é o bastante pra ver que eles transpiram arte. O retrato que eles fazem da força da dificuldade que enfrentam é o maior dos esbarrões que encontram nosso peito nesse fio do meio.
Direção e criação: Paulo Emílio Azevedo
Intérpretes-criadores: Salasar Jr. e Tácio Fidélis
Assistente de direção e Técnica: Vivian Magalhães
Fotos: Fábio Pazzini