Um mantra para iniciados
* escrito para o Criticatividade
É com a sessão lotada e grande fila de espera por ingressos que o Cena 11 se apresentou no último dia da MIT com seu “Protocolo Elefante”. Requentada da Bienal do SESC de 2017, e mesmo antes já vista por aqui, a obra anuncia partir de uma pesquisa de isolamento que pode ser questionada desde a entrada do público. A chegada do público em cena aberta, já batida de uma ala do experimental, com os bailarinos à toa, que parece nos colocar em uma plateia de amigos que os cumprimentam e com eles conversam, é esteticamente desnecessária em quase qualquer obra, e essa não é uma exceção. Nesta obra, qual o sentido da anti-dramaticidade? Qual o propósito de tamanha abertura em uma obra que se diz sobre isolamento?
A cena só começa de fato com a chegada da sonoplasta/iluminadora que troca de roupa e inicia o espetáculo — em mais um movimento pre-obra gratuito e sem paga. Dos diversos pontos da plateia onde estavam, os bailarinos levam bastões de metal para o palco e o reconstroem quase como uma jaula. A percussão corporal se junta aos sons guturais para fazer uma trilha perturbadora. Há algo de incômodo aqui, assim como na luz, mas que serve a seu propósito de uma criação feita para perturbar.
Parece se construir, nos bailarinos-bonecos do Cena 11, um processo quase constante de desumanização, um tanto de pós-humano. E ainda assim, nesta proposta, algo de ritual religioso. A cena se expande para a plateia através de um mantra, e passamos a questionar o desapego corporal aqui pregado e proposto.
A obra, como um tanto de propostas que fazem parte do DNA do grupo, trabalha a exploração do fracasso corporal. Porém, neste caso, não é exatamente a queda que está em foco, mas sua antecipação. O gesto que a causa, mas também impede a sua realização.
Pequena parte da plateia desiste da obra e deixa a sala. Não querem fazer parte desse culto. E têm o direito. Esse tipo de ocasião, essa situação, exige um tanto de abertura ao devocional que não é comum nem do interesse de qualquer um. Mas encontramos aqui uma plateia, no geral, muito disposta. Entre os amigos, os conhecidos, os reconhecidos, e muitos admiradores, o espetáculo-culto continua, em casa cheia.
O aspecto religioso, junto dos tubos metálicos, leva uma questão de paralelo na cena da dança brasileira quase inevitável: o que acontece se os canos de “Bach” do Grupo Corpo despencam em meio ao caos? Saímos da igreja, da liturgia e adentramos um plano de energias indeterminadas, o Mantra que não sabemos para que. E a pergunta, que provavelmente nunca existiu, encontra na cena um tanto de resposta, ligando formas opostas e complementares de se fazer dança.
O paralelo é interessante, mas pouco nos fala dos méritos e dos problemas do “Protocolo Elefante”. Do lado negativo, os bastões, que determinam tanto da obra, são usados em algumas sequências infantilizadas de exploração cênica, reduzida a um brincar que, se tem algo de interessante, não tem matéria, desenvolvimento, habilidade, domínio do objeto, para valer a pena em si.
A falta de continuidade perceptível, mesmo quando aparece em breve sequências bem trabalhadas ao longo do espetáculo, no geral nos leva a um domínio misto de circense improvisado e inconcluso. Como se fosse um vídeo de alguém que descobre um objeto inusitado e começa aprender a manipulá-lo. Mas o que que falta é a paga que encontramos nesses vídeos, que, normalmente, num time lapse, nos mostram todo o processo — da descoberta ao domínio técnico deslumbrante do aparato. Na cena do Cena 11, não chegamos à proficiência: ficamos nos primeiros dias do trabalho. O que só pode ser proposital, posto que a obra não é nova e, podemos ter certeza, os bailarinos já estão familiarizados com o aparato.
Nesse contexto, o uso violento do corpo transformado em objeto cênico leva a novas leituras da situação quase-religiosa de invocação, e com um tanto de medo e receio necessários acerca daquilo que trazemos ou tentamos trazer a tona.
Um apito soa o chamado. Um tempo. Nada virá? Não, eles não encontraram nada, assim como só se encontram em cena para passar de mãos os bastões. Uma última invocação nos traz a luz azul, vinda do fundo do palco, como horizonte, mar, que baixa sobre os bailarinos e inunda a plateia. Um instante de meditação, aturdidos pelo impacto visual da proposta. E depois dela, cordas. Que serão arrastadas pelos bailarinas pelos corredores da plateia e deixadas por eles em seu caminho de saída da sala nos indicando para onde seguir.
Está terminada a cerimônia, não fomos iniciados, não recebemos uma visitação, não encontramos nenhuma grande revelação depois de nossa invocação. Seguimos o “Protocolo Elefante”, nos isolamos um tanto, percebemos o que já sabíamos, mas talvez não lembrássemos: que temos coisas em comum. Não parece muito, e talvez realmente não seja. Mas é um belo efeito visual, e seduz os dispostos a trilhar o caminho dessa iniciação.