O que te faz mover
Crítica publicada no jornal O Povo, dentro da cobertura da Bienal Internacional de Dança do Ceará 2021
Artista homenageado pela Bienal desse ano, Jorge Garcia apresentou na programação seu solo de 2009, “Nihil Obstat”, em latim “nada impede”. O título carrega a sugestão de que a obra discute a permissão. Assistida, ela leva pra uma dinâmica de dois pontos: o que é que te impele / o que é que te impede. Balançando em pêndulo, esses dois pontos vão se alternando, e colocando em jogo aquilo que impulsiona o movimento, e aquilo que segura o movimento.
É uma aproximação quase direta com o cavalinho de brinquedo que vemos em cena. Ele se move, mas está preso por um fio, o que delimita seu caminho, e faz com que ele caia, de tempos em tempos. Ele tem o impulso, a bateria que causa seu movimento, mas ele também tem essa rédea, um limite claro pra essa movimentação.
No palco, o bailarino dialoga com a situação proposta por essa e outras três estruturas cênicas. Cada uma delas oferece uma nova estratégia do que causa o movimento e do que interrompe o movimento. O conjunto lembra uma galeria de arte, com quatro instalações que precisam ser ativadas pela dança, e nesse aspecto, assemelha-se aos “Objetos Coreográficos”, do coreógrafo William Forsythe.
Porém, diferente da proposta de Forsythe, que é voltada para a construção e a arquitetura dessas estruturas e sua experimentação espontânea e por todo público, aqui o foco é a experimentação que não é gratuita, que não é à toa, que não é descompromissada. Quem experimenta é um corpo extremamente treinado, e de qualidade ímpar.
O prazer de “Nihil Obstat” não vem da organização que provoca uma proposta de dança, mas da dança em si. Aquilo que encanta não é o conteúdo bruto de um espaço desenhado pra fazer qualquer um mexer, mas o resultado delicado do que acontece quando a pessoa movendo é esse grande bailarino. E é uma delícia ver Jorge Garcia se mexendo.
Se a construção lembra a galeria, o uso que é feito em cena dessa arquitetura trabalha inteiramente a partir de uma noção de coreografia, como elaboração de movimento por uma lógica. O interesse cresce porque cada área desse trabalho, cada estrutura, lida com princípios diferentes. Se a cena com o cavalinho parte de articulação e queda, a cena com as caixas em pêndulo trabalha com o espaço e a cenografia, enquanto a cena do amplificador com pedal trabalha a lógica da trilha sonora, e a cena com a lâmpada, a iluminação.
Todo elemento pode gerar movimento, pode gerar dança. Essa não é uma percepção nova. A própria proposta de Forsythe e de outros tantos artistas experimentais apostava nesse caráter mecânico de evidenciar a naturalidade da origem do movimento. E frequentemente eles nos entregaram construções pra podermos experimentar essa simplicidade.
O que entra em jogo em “Nihil Obstat” é o valor inegável da arte e do artista. Porque o que Garcia nos mostra não é a simplicidade do ponto de partida, mas a complexidade e beleza de um ponto de chegada que só se pode alcançar com uma pesada bagagem corporal. É humanizado e é relacional, mas também é estético e de inspiração. É possível, é paupável, está ao alcance de quem se move. Mas também é poético, e mostra que pra mover desse jeito é preciso do tanto de experiência e qualidade que tem um grande bailarino e coreógrafo como esse.
Concepção e Interpretação Jorge Garcia
Trilha Sonora Henrique Iwao
Improvisação Sonora Eder “O” Rocha
Design de Luz Ari Buccioni
Operação de Luz Walter Façanha
Produção Executiva Cristiane Klein (Dionísio Produção)
Registro Fotográfico Silvia Machado, Rose Carneiro e Charles Trigueiro