Críticas

A importância das memórias incômodas

Preconceito e racismo, em suas várias manifestações, mostram a reflexão do Balé da Cidade em IllumiNations, parte do Histórias Afro-Atlânticas, abrindo espaço para talentos novos e consagrados, no grande elenco da companhia paulistana.

No Instituto Thomie Ohtake, o já tradicional discurso de Ismael Ivo antes das apresentações do Balé da Cidade de Sao Paulo ganha novos tons. Inserida no contexto da exibição Histórias Afro-Atlânticas, “IllumiNations” é um desenvolvimento do programa “Asas Para Voar”, que da chance aos bailarinos da companhia de se aventurarem na função de coreógrafos, criando para seus pares obras que abrem o espaço do experimental, tanto no sentido do teste e da descoberta, como nas formas como se dirigem e abordam temas.

Aqui, o racismo se coloca como tema, inspiração e debate — provocado dentro da companhia, pela primeira vez dirigida por um bailarino negro, e com poucos negros em seu elenco. A partir de suas discussões em grupo, o projeto se articula em 12 cenas, de muitas assinaturas, num todo que oferece um olhar amplo e sem medo de ser sincero, para a negritude, os preconceitos que sofre, e as formas como o racismo se manifestou e se manifesta em nossa sociedade.

Não há indicações específicas de como proceder, e o espaço da criação artística é reservado para que nele os novos talentos possam se desenvolver, mas é inevitável pensar sobre esse lugar que afirma uma questão da arte contemporânea, bem expressa pelas palavras do diretor: “é fundamental que os artistas de hoje deixem impressa uma opinião sobre o tempo. Só fazer arte de alta qualidade não basta”.

De fato. Para muitos propósitos e propostas, não basta. Permanece imprescindível, no entanto, fazer arte de alta qualidade. Mas isso não justificaria que fosse vazia de significado, tampouco esvaziada de seu labor e resultado estético artístico. É isso que Ivo aqui defende. Arte, qualidade, e reflexão. E essa tem sido uma marca de sua gestão, preocupada com o momento da cidade, dos corpos de seu elenco, dos temas que tocam São Paulo e o país.

É arriscado ressaltar a qualidade em projetos que têm caráter experimental, especificamente em projetos que abrem oportunidades (por vezes primeiras) para a consideração de uma função de dança totalmente distinta: coreografar é trabalho complicado, pouco exercitado por aqui, e que frequentemente resulta na dificuldade de encontrarmos bons novos coreógrafos, mesmo em meio a tantos maravilhosos intérpretes, como frequentemente vemos na cena da dança.

O desafio é ainda maior porque essa edição do “Asas” não nos dá apenas novos talentos. Entre talentos mais e menos novos, vemos outros que ja tiveram oportunidades de coreografar, e a eles se misturam obras com o peso da assinatura do próprio diretor.

No caldo dessa mistura, encontramos um terreno fértil: não homogêneo, mas denso de potenciais (ainda que distintos), no qual vários destaques aparecem, para afirmar o despontar de alguns talentos. São 12 peças curtas que integram o longo projeto de mais de uma hora de dança. E, como seria de se esperar nesse tipo de contexto de produção, os talentos (revelados, ou simplesmente lembrados) não são apenas os de composição.

Estamos a frente de um dos melhores elencos do país. E é a ocasião de mostrar o potencial coreográfico de fazê-los brilhar que seduz. Ivo é mestre nesse revelar e otimizar talentos, e a sua primeira coreografia do programa, “Delírio de Uma Infância”, é um dos positivos destaques de “IllumiNations”, em que a plateia tem o prazer de ver Uátila Coutinho num solo e de perto.Com o corpo pintado de azul, ele mistura a dinâmica humano-natureza-animal, trabalhando dentro do ritualístico, da mistificação do gesto, do corpo e do espaço, em um sistema em que tudo se transforma em tensão, em peso, depois desaguando em acalanto, memória doce.

Ele é todo movimento, testemunha de força e bravura. É o mar bravo, que não será acalmado, e transporta qualidade interpretativa para a relevância do trabalho de coreografia em seu sentido mais íntimo de organização do movimento — que reaparece em outros positivos destaques, como “Ínsula” de Igor Vieira.

De raiz completamente oposta, aqui, se há um ritual para a movimentação, trata-se do ritual do cotidiano. E seu maior atrativo é sua progressão, desenvolvida em conjuntos múltiplos e simultâneos, bons para se ver tão de perto — como a situação de sua apresentação no Thomie Ohtake. Talvez se perdesse num palco tradicional, talvez se bloqueasse algumas fileiras mais para trás do publico, mas ali, grudados nos bailarinos, essa obra mostra sua orientação a partir de seu lugar, e revela o potencial da proximidade dessa experiência de partilha e de reflexão conjunta.

É preciso lembrar, eles nos dizem, ainda que parte daquilo que é lembrado não seja feliz. Estamos lidando com um ritual cênico pela memória, como “Lila” de Fabio Pinheiro nos mostra, empilhando corpos, agitando aqueles que ainda pisam na terra, ou no dedo que nos aponta e na boca que é tapada em “Alusão”, de Ariany Pinheiro, em que uma dança de amarras — do figurino à coreografia — discute o que prende e o que se prende, e nos transporta ao lugar de claustro.

Ivo reforça a importância das memórias incômodas em “Gate of No Return” e em “Litanias de Satã”. Nos mostra o chicote, a corrente, a tinta pingando como sangue dos pés e mãos dos bailarinos, trazendo a tona raízes de crueldade e tristeza, colocando na luz aspectos da pior parte dos homens, e que justamente por isso não podem ser esquecidos, e precisam ser tema de reflexão, especialmente numa situação como essa: discutir o racismo agora é inevitavelmente discutir um sistema de construção do racismo, pautado em injustiça, em crueldade, em força e dominação, e entender os efeitos que todos esses elementos têm desde a construção dos preconceitos até sua manutenção atual, e infeliz presença na sociedade.

Trata-se também de pensar nas figuras que ali se associam, como na liberdade de expressão e de ação, discutida no Luther King de “Tiro Branco”, de Fernanda Bueno, que aparece numa construção de deslocamento toda focada no que se pode ver como a proteção de algo, materializado num livro, que, no entanto, depois se é impedido de ler, na caminhada tortuosa de um homem que carrega e arrasta outros tantos em seus pés, pela força de sua resistência, num dos melhores trabalhos de elenco do programa.

Outras imagens, mais delicadas e não menos pungentes, aparecem, por exemplo em “Ama (a) Negra”, de Raymundo Costa, que trabalha sobre a figura da Ama numa coreografia em que a vemos ser solicitada, ter a barra de sua saia puxada, e sua atenção constantemente pedida, mas oferecida a uma criança de branco, e não àquela que com ela se parece — esse dar atenção ao filho do outro, que ainda permanece tão enraizado em várias de nossas estruturas sociais, e que tem uma formação de origem que mistura amor e dominação, sofrimento e cuidado, em ciclos cumulativos.

O espaço é, enfim, o de refletir sobre o eu-outro, diferenciação em que se apoia basalmente qualquer principio de valoração e desvalorização dos outros indivíduos. E nenhuma obra trabalha tanto isso quanto o “Rito ao Comum” de Manuel Gomes, em que dois bailarinos se despem para encontrar o lugar comum, numa coreografia espelhada, que trata da identidade e da semelhança, dentro das diferenças. Num ponto alto, quebramos o espelho, e somos transportados ao verdadeiro propósito desse exercício e dessa reflexão temática: não apenas o se ver no outro, mas o se ver com o outro.

Fundamental porque os caminhos da empatia — ainda que importantes — claramente não nos bastam. Não se trata de pensar que naquele lugar você poderia também estar, mas de entender que aquele que não é você também tem um lugar, não menos merecedor, não menos importante, e que esse lugar, que esse outro, continuam injustamente sendo vistos como menos, como menores.

A força desse projeto é seu trabalho de reflexão — nenhuma beira rasa, nenhuma beira desinteressante, abordando as muitas possibilidades de um tema espinhoso e fundamental para a nossa sociedade. Que nele podemos entrever tantos talentos acaba sendo um segundo plano, ainda que muito valioso, e talvez esse seja seu melhor lugar de realização. A obra tem valor porque é relevante, e sua relevância artística articula a relevância politica e social. Não vamos a ela nem só por seus artistas, nem só por seus temas, e é o conjunto dos elementos que lhe da seu grande valor: arte de qualidade, que deixa impressa uma opinião sobre o seu tempo.