Anunciada euforicamente, a companhia sul-coreana liderada por Eun-Me Ahn fez a abertura da Bienal Sesc de Dança 2019 com “Dancing Grandmothers”. Em sua proposta, o espetáculo considera o espaço para se ver o contraste de bailarinas amadoras idosas, dançando junto do potente elenco da companhia. Delicadamente, desviamos o interesse pela obra para o interesse pelo peculiar de vermos uma dezena de senhoras coreanas no palco pela primeira vez.
É preciso, ainda que seja difícil para o público, transpor a situação que lembra um tanto a observação do inusitado — algo que pertence ao circo de curiosidades ou o zoológico — para escapar da redução do “veja que senhoras simpáticas, felizes por estarem no palco”.
Organizada com sequências de video, a obra coloca a plateia numa viagem pelo interior da Coreia, desde que entramos na sala. Um novo choque de cultura se da na passagem solo da coreógrafa pelo palco. Seu trabalho com a sustentação do movimento, algo de raiz completamente distinta da dança cênica mais reconhecível e em produção por aqui, traz um corpo num aspecto quase ritualizado de movimentação.
Há uma repetição de tentativas de ritualização, que, talvez, sejam uma marca de respeito e honra às origens. A isso mistura-se um tanto de cômico, por exemplo quando os bailarinos entram em cena, vestidos em uma caracterização até cômica de avó, para transformar o tom da obra em acrobático, dinâmico, e de vigorosa potência.
São sequências de saltos, giros e rolamentos, numa dança completamente distinta daquilo que as avós amadoras fazem e são capazes de fazer, mas que não perde uma referência constante à movimentação delas. Porém, esse “delas” ainda nem trata exatamente dessas avós, que a esse ponto não entraram em cena, mas de uma (re)construção de uma memória afetiva da plateia e da noção genérica de “avó”.
As avós coreanas chegam primeiro em uma longa sequência de videos, em que senhoras aparecem dançando despretensiosamente. A exibição contínua é problemática. É fácil de cativar e criar um interesse. Mas o video é extenso, pouco variável, e permeados de risos do público frente ao cômico da situação.
Essa leveza é fácil para a plateia, e insiste num viés de se transformar tudo em diversão. Mas confronta a lógica da obra, que se apoia na justificativa da experiência dessas senhoras para as colocar em cena para “serem livres”, ainda que apenas por alguns instantes.
É aqui que cola mal a premissa da coreógrafa, que lhes diz “vocês são lindas, façam o que quiserem”. Quando trazemos uma dezena de avós coreanas amadoras para dançarem e serem livres por um instante no Brasil, esperamos ver nesse corpo e nessa liberdade algo de profundamente particular. E isso não está na obra.
O que temos são velhinhas gentis e simpáticas, sendo guiadas pela cena pelos bailarinos da companhia. Entre o adestrador e o infantilizador, os bailarinos as chamam para dançar no palco. Vê-se um mundo de construções de cuidado, para o deslocamento, para a movimentação, para a presença. Tudo parece revestido e acolchoado de boas intenções, e poucas realizações.
À primeira vista, provavelmente não incomodará. Estaremos no domínio da fofura, da simpatia. Mas a obra se arrasta e abre brechas para o pensamento, cada vez mais problematizando a proposta, que tenta se salvar entre distrações. A maior delas, a transformação da cena em festa ao final da obra, quando o público dança no palco com as senhorinhas e o elenco.
A fantasia e a intenção da liberdade, não passam muito de uma proposta de gozo rápido. É agradável, é fofo, é simpático. E não precisamos pensar sobre o que significa para essas senhoras esse instante de liberdade. Eun-Me Ahn parece tentar não provocar pensamento ou reflexão, investindo no visceral imediato. Elas são lindas, elas dançam, elas parecem se sentir bem. Nos juntamos a elas para sermos lindos, para dançar, para nos sentirmos bem.
É algo… A festa é, em si, também uma forma de produção estética. Mas aqui preferimos transformar a festa em arte do que abrir um espaço para uma expressão sobre essas senhoras, que se transformam em inspiração rasa, em objeto de contemplação, mas não em sujeito da arte. Seu instante de liberdade é ainda mais limitado — mas intensamente festejado.
[fotos: Juliana Hilal / Divulgação]