Críticas

Parabelo | Grupo Corpo

Mais regional das coreografias do Grupo Corpo, Parabelo coloca em cena um sertão de promessa e esperança que contagia, desde 1997, e que continua contagiando, agora na turnê europeia da companhia, que passou mais uma vez pela Maison de la Danse de Lyon.

De volta ao palco de Lyon, o grupo Corpo encerrou o mês de abertura da temporada 2015/2016 da Maison de la Danse, com um programa duplo: Triz, criação de 2013 que ainda não havia sido dançada por lá, e Parabelo, de 1997, já conhecida dos lyonenses. O programa mostra, simultaneamente, a variedade e a continuidade do trabalho da companhia mineira, que, com 40 anos de carreira, tem um traço e característica marcantes, perceptíveis de longe, e que tiraram do público francês — normalmente bastante sóbrio e pouco responsivo — longos aplausos.

Triz mostra um trabalho com a repetição e com limites — do corpo, do movimento, da música — que provoca o público. Mas a estrela do programa apresentado em Lyon é o regionalismo da obra de 1997. Parabelo tem uma inspiração pontual, em movimento, em cenografia e em trilha sonora, no sertão nordestino. Tom Zé e José Miguel Wisnik assinam a composição de nove peças, nessa primeira colaboração (de muitas que se seguiram) dos músicos com a companhia, explorando canções de trabalho, e instrumentos e ritmos particulares do Brasil e de nossa herança cultural.

Da região, ressalta, por toda a obra, um aspecto de dificuldade, de labuta, de rigor. A impressão melancólica de desolação é alternada com a referência à fé, à persistência, à sobrevivência, e à celebração da vida que resiste. Os cinco ex-votos que compõem o  primeiro painel de fundo do cenário de Fernando Velloso e Paulo Pederneiras, reforçam essa característica, e traçam a ideia de que Parabelo é uma promessa, uma crença: esperança da resiliência e sua comemoração, que se alcançam no segundo cenário do espetáculo, um painel de fotografias, de retratos de situações que vão do cotidiano às ocasiões especiais, reforçando aquilo que há a ser celebrado.

Quando o espetáculo começa, uma iluminação gradativa rompe o escuro preenchido só pela música rítmica, percussiva e melancólica, mostrando os bailarinos no chão, de cócoras, posição de domina toda a primeira cena. Os bailarinos estão de costas, vestidos no primeiro dos figurinos de Freusa Zechmeister para Parabelo: malhas que cobrem o corpo todo, pretas, mas de onde entrevemos um fundo vermelho, como a carne, e que se destaca nos pés, calçados em vermelho. Com essa posição sertaneja, já somos transportados para esse outro lugar, e retomamos o trabalho corporal da companhia e do coreógrafo, Rodrigo Pederneiras, que tem força e treinamento do ballet clássico, mas que demonstra uma mistura de referências a tradições e formas brasileiras, que são absorvidas e transformadas em cena; a proposta, aqui, não é a de colocar sobre o palco versões dançadas de manifestações populares, mas sim de alimentar o corpo que dança com culturas das danças de diversas origens.

Quando os bailarinos saem do chão, para a segunda cena, o painel dos ex-votos toma forma. São fotografias em grande escala de cinco cabeças de cera, que, iluminadas em vermelho, parecem completar os corpos — vestidos no subtom de vermelho, e maquiados com os olhos em vermelho — dos bailarinos em cena. A dança privilegia as extremidades, com uma grande sustentação do centro do corpo, bem exemplificada durante Assum Branco, terceira cena de Parabelo. O casal de bailarinos desse duo está permanentemente em contato, com o bailarino manipulando a bailarina em todas as direções. Ela levanta vôo, mas apenas com a ajuda e o apoio de seu parceiro, sendo trazida sempre de volta para o chão. Esse tipo de retrato, estético, de uma beleza intensa, mas melancólica, é colocado em alternância com outras cenas, que, com influência do baião e do xaxado — por exemplo —, vão mostrando a riqueza da obra composta pela companhia.

O grande trunfo do trabalho — tanto de Parabelo como do Corpo em geral — é esse constante aspecto de integração, de diálogo que forma obras completas em si mesmas, que se alimentam e se enriquecem a partir de cada uma das escolhas que são feitas na construção do espetáculo. Esse tipo de qualidade na realização é facilmente reconhecido pelo público. O que surpreende numa temporada como essa francesa, é o contágio que têm esses temas tão específicos do Brasil com esse público diverso. O próprio coreógrafo já classificou Parabelo como a mais regional de suas obras, reportando a uma imagética do sertão, que nos remete a Guimarães Rosa e a Euclides da Cunha. Assim, mesmo que não seja uma tradição da qual cada um de nós faça parte, individualmente, há uma resposta pelo viés do coletivo que se sobressai dessa proposta.

É dessa forma que o regional é transposto em universal e chega tão intensamente ao público francês. Esse contato é exacerbado pela característica da movimentação intensa, física, e técnica do elenco. Quando chegamos à cena final, o forró de XiqueXique, os corpos do Corpo estão em festa. E a plateia vai acompanhando a movimentação rodada, saltada, solta, extensiva, que valoriza os potenciais dos bailarinos e a característica do trabalho de Rodrigo Pederneiras, misturando a construção de solos e grupos extremamente energéticos e convidativos.

Aqui, os bailarinos já estão vestidos em calças justas — vermelhas, laranjas e amarelas — mostrando ao máximo o torço, a cena é preenchida pelo segundo painel, aquele com as fotos, e a iluminação mantém a sua característica quente, mas não mais vermelha, sombria e melancólica, revelando melhor os sorrisos nos rostos dos bailarinos, e detalhando a exuberância do movimento amplo dos corpos.

A coreografia volta ao chão para terminar. Seu último instante retoma um aspecto da construção da primeira cena, com as pernas que sobem e pesam, se dobrando de volta para o palco, cruzadas, com as cabeças que pendem para trás, mas os corpos, agora soltos e não mais tensos, acentuam a leveza do tom do final de Parabelo. Se Parabelo reforça o esforço e a promessa, ao mesmo tempo ele reafirma a esperança e a sobrevivência. Vemos uma valorização não da aspereza do sertão, mas sim de uma forma de alegria e de doçura do sertanejo. Na obra, as promessas não são valorizadas exatamente por suas realizações apenas, mas, sobretudo, por sua capacidade de oferecer uma forma de consolo na crença. Porém, considerando Parabelo dentro do repertório — do Corpo e da dança brasileira — não fica necessidade nenhuma de consolo: todas as promessas estão entregues ali, no trabalho, na cena e nos corpos do Corpo.

TRIZ / PARABELO