Suíte de Raymonda / Primavera Fria | São Paulo Companhia de Dança
Este ano, o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros da São Paulo Companhia de Dança veio mais cedo, abrindo a temporada de junho. Essa não foi a única surpresa, com o ateliê incluindo pela primeira vez uma remontagem clássica, de Guivalde de Almeida, além da criação de Clébio Oliveira, e de outras duas obras do Ateliê de 2016. Estreias de grandes acertos abrem uma temporada criando altas expectativas e são criticadas no Da Quarta Parede.
Em junho, tornou-se clássico assistir à temporada da São Paulo Companhia de Dança no Teatro Sérgio Cardoso, com programas semanais que incluem, de praxe, estréias da companhia e obras do repertório recente. Ótima ocasião para aumentar o contato e a frequência do público, e para rever algumas criações que perduram. A surpresa de 2017 foi a abertura da temporada com o — também já muito esperado — Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, costumeiramente recebido no segundo semestre, e do qual têm saído obras especialmente relevantes para o repertório da companhia e para as platéias que a acompanham.
Não só a antecipação do Ateliê surpreendeu esse ano, mas também a presença nele de uma coreografia clássica. Raymonda, originalmente criada em 1898 por Marius Petipa para o Ballet do Teatro Mariinsky, e que vem ao palco numa versão com Remontagem assinada por Guivalde de Almeida. A longa introdução da suíte dá ao público, na platéia ainda acesa, o tempo de se preparar para o que está por vir, e de se ambientar na música de Glazunov, que foi frequentemente descrita por coreógrafos como George Balanchine como uma das melhoras peças de ballet de todo nosso repertório.
O exagero não é gratuito. Melodiosa e cadente, a trilha de Glazunov abre um espaço invejável para a composição coreográfica e para o desenvolvimento da performance dos bailarinos. E aqui, nem a coreografia, nem o elenco da SPCD desapontam. O timing aguçado dos intérpretes, levado pela progressão natural da música, garantiu uma fluidez entre os movimentos e uma precisão em sua realização que traz à memória as melhores dentre as realizações da companhia, e deixa uma impressão positiva, sobretudo dentro do domínio do clássico.
Se a movimentação se constrói a partir do exibicionismo técnico, os maiores sucessos desse programa são a solista que faz o papel-título, Paula Alves, que além da técnica afiada e de pés que conseguiriam prender a atenção mesmo que não fossem o foco do trabalho, tem uma expressividade, naturalidade e segurança na execução que vinham fazendo falta nos palcos daqui; notáveis também, são as bailarinas do conjunto que realizam um pas de quatre milimetricamente preciso.
No corpo de baile, os homens acabam prejudicados. A coreografia hiper técnica funciona menos bem com eles, e as sequências — difíceis e atrevidas, isso é inegável — de giros, pelo menos na estréia da companhia, mostram aquilo que ainda podem vir a ser, mas que no, momento, não são: e os giros terminavam incompletos, com linhas e eixos cambaleantes. Com uma obra tão musical, qualquer imprecisão no tempo e na execução parecem saltar à vista, e, nesse sentido, Raymonda é um risco, mas um risco do qual, no geral, a São Paulo Companhia se sai bem.
O mais importante dessa obra nesse espaço, o Ateliê, é mostrar que aqui se faz ballet, e se faz ballet bom. Do outro lado da moeda, os problemas conceituais abundam. O ateliê é de “coreógrafos” brasileiros, mas a ficha técnica coloca Guivalde como remontador, e Marius Petipa como coreógrafo. Forçar essa indistinção é uma forma de desvalorizar o trabalho dos indivíduos envolvidos e, sobretudo, carrega problemáticos traços de amadorismo, remetendo às estruturas de festivais competitivos de dança clássica em que títulos e nomes parecem brotar espontaneamente, sem reflexão, e sem cuidado.
Mesmo que aceitemos uma paridade entre Remontador e Coreógrafo, ainda é cabível questionar se aquilo que foi apresentado trata-se mesmo de uma Remontagem da obra de Petipa, e não apenas de uma nova versão para um enredo / tema / noção. Essa interrogação se desdobra em outras, e questiona-se a possibilidade de chegar à versão primeira coreografada por Petipa, que é dada no programa como referência. Sobre isso, no caso de Raymonda, haveria um pouco mais de sorte, porque a obra foi preservada longamente em repertório na Rússia. Porém, o próprio remontador diz no programa que se inspira das várias versões de Raymonda que conhece, o que reforça a impressão de uma colagem de referências, que não é a ideia de uma remontagem ou reposição.
Mesmo que houvesse uma versão preservada desde 1898, ainda seria fundamental questionar o acesso a tal versão, a transmissão dessa versão de um indivíduo a outro até chegar no remontador que agora nela trabalha. Ou seja: até que ponto ainda é possível dizer que estamos realmente remontando Petipa. Fedor Lopukhov, diretor do Mariinsky de 1922 a 1930 foi um dos maiores responsáveis pela recuperação das coreografias de Petipa, porém, ele mesmo escreveu que nas versões que apresentava ele não tinha nem medo nem receio de “corrigir erros” do coreógrafo, nem de alterar a coreografia conforme achasse adequado — ou seja, mesmo nas obras que se preservaram, estaríamos tratando de versões, adaptadas, inspiradas da obra de Petipa (ou daquilo que se atribui em dado momento a Petipa), mas não necessariamente de remontagens.
O que é Raymonda? — é a pergunta necessária de se fazer. É uma história, um enredo, um libretto? É uma coreografia, um conjunto de movimentos específicos e realizados de determinada maneira? É uma composição musical, uma trilha sonora? Na versão que a São Paulo Companhia agora nos apresenta, encontramos intensamente a trilha sonora, já os movimentos, não são necessariamente referencia à versão que se lista como original, e, a história, como apresentada no formato suíte, é completamente diluída. Sim, ela vem do terceiro ato de Raymonda, no qual todo o enredo já se resolveu e estamos apenas apreciando a dança — forma justa, válida e interessante, mas que não serve necessariamente de apoio para uma identificação da obra.
Disso tudo, o mais importante é o papel de uma companhia profissional na formação e educação das platéias. Há uma distinção entre criar para um festival competitivo de dança e para uma grande companhia como esta, e os trechos de repertório clássico da SPCD ainda não definiram completamente seus posicionamentos. O que é realmente positivo é que esses posicionamentos — e a bagagem teórica e histórica que no ambiente profissional vem atrelada a eles inevitavelmente — têm, aos poucos, se esclarecido. E não só os posicionamentos, mas também os resultados. Se há o que se discutir na apresentação da ficha técnica dessa Suíte de Raymonda, não há discussão sobre a qualidade da proposta, e o bom nível da execução — possivelmente, os melhores dentro do repertório clássico da São Paulo Companhia.
Esse primeiro programa da temporada de junho trouxe de volta Ngali… de Jomar Mesquita, e Pivô, de Fabiano Lima, ambas do Ateliê de 2016. Um pouco amadurecida, Ngali…continua impactante, muito bem dançada e ainda mais aplaudida pelo público. Já Pivô, não teve a mesma sorte: o que já foi apontado como problemas dessa obra continua tão presente quanto no ano passado, com a distinção de que, dessa vez, tivemos alguns acidentes em cena, sobretudo na manipulação das bolas de basquete, que, sem sucesso, tentam sustentar a obra.
Entre essas duas reprises, mais uma estreia completa o programa, Primavera Fria, de Clébio Oliveira — esta, sua terceira vez criando para a SPCD. A obra chega recoberta de conceitos e de propostas (psic)analíticas que não são (completamente nem) facilmente percebidas. O curioso é que essas propostas não são realmente fundamentais para a realização da obra, e o que a sustenta é uma coreografia intricada, trabalhada em movimentos espasmódicos, apressados, de corridas, com um gestual que parece se espalhar pelo espaço. A impressão, catatônica, é de um desacordo, dos bailarinos consigo mesmos, ou dos bailarinos entre si.
De tamanha fisicalidade, resulta um esgotamento físico, mas também emocional, que compartilhamos com os intérpretes. Todo esse efeito é acentuado pela trilha sonora original de Matresanch, que mostra um trabalho cooperativo de sucesso entre o coreógrafo, o músico e o elenco. Com os membros esticados e se debatendo, os bailarinos constróem uma poética de pequenas torturas mentais, reflexão que pesa sobre ideias de formas de sofrimento que nos infligimos. Aqui, resvalamos nos temas que o coreógrafo descreve no programa, mas, para neles realmente entrarmos, precisamos de desenvolvimento mais potentes. Vemos, por exemplo, como que chamando a atenção para os temas de relacionamentos e perda, uma sequência, seguida de um black-out que deixa uma grande sensação de fim antecipado, em que os bailarinos, em múltiplas formações de casais, se beijam. Esse fim falso é seguido de uma passagem que encaminha para o fim da obra, especialmente interessante, com um trabalho de solos e duos inspirados em queda e desequilíbro, com figurinos cada vez mais chamativos.
O que isso tudo quer dizer não sabemos ao certo. Há algo que se perde na tradução entre a proposta e sua apresentação e percepção. O curioso é que aquilo que se perde e aquilo que não se compreende enquanto conteúdo concreto, de alguma forma é transmitido enquanto sensação. A combinação da música, da coreografia e da execução brilhante do elenco, nos coloca junto deles num estado acelerado, respirando depressa, e o coreógrafo consegue produzir um efeito de caos mental contundente, sensível, partilhável.
Se a articulação de seu discurso nos leva para um lugar confuso, a realização de sua obra nos leva para uma certeza. Nesse ponto, ambas as estreias da noite convergem. Aquilo que está no palco é bom, é de qualidade, é importante, é bem feito; mas é diminuído por aquilo que a companhia decide falar e nos apresentar de seus processos em seus programa. Sim, é um problema, mas um problema muito melhor do que se fosse o contrário, e o discurso fosse melhor do que as obras — não é esse o caso. Se nos últimos anos, o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros serviu para mostrar a capacidade dos nossos artistas, e para deixar um gosto de satisfação inesperada, aqui ele estabelece o nível e o tom para a temporada — mas também para sua continuidade, e para a continuidade da companhia, às vésperas de celebrar sua primeira década.