Críticas

O Quebra-Nozes (Pas de Deux) / O Lago dos Cisnes (Ato II) | SPCD

Discutir remontagens é algo sempre complicado. Se de um lado há um desejo contínuo pela apresentação de obras que figuram num imaginário popular e histórico da dança, por outro, há a inevitável discussão das possibilidades de acesso que as obras declaram ter. Não se trata de uma simplificação acerca do que pode ou deve ser feito nesses casos, o fato é que todas as grandes companhias de repertório transitam por certos nomes-referência, que são esperados pelo público, e que, muitas vezes, estão ligados a um sistema de validação e consagração de artistas, intérpretes e grupos.

Nesse sentido, não é nada surpreendente que a São Paulo Companhia de Dança reserve uma noite de programa para clássicos, aproveitando uma parceria com a OSESP para levar à Sala São Paulo o que eles chamaram de “Noite Tchaikovsky”, um programa misto de orquestra e dança, que deixa observarmos um pouco das obras do notável compositor russo, e de versões coreográficas para duas delas.

Ainda que muito da música se altere com o tempo e a execução, há algo que une as múltiplas performances possíveis da mesma obra de um compositor, uma linha que nos permite chegar, com certa segurança, a uma certa proximidade do que o compositor previa para a sua música, quando composta. Estudos históricos ajudam a completar e complementar os entendimentos desses ensejos, que podem ser adaptados de acordo com circunstâncias diversas, que vão desde a modernização na fabricação dos instrumentos, até aos desejos específicos dos artistas envolvidos nas versões que são apresentadas.

Com a dança, outras dificuldades aparecem. Não que não existam formas de partitura, de anotações, de registro das intenções dos coreógrafos. Elas existem. Mas seu desenvolvimento, ainda que concomitante à produção coreográfica, nem sempre é algo ligado aos criadores: enquanto as partituras de Tchaikovsky foram escritas por ele próprio, não há notações sistemáticas dos trabalhos de Petipa feitas pelo próprio coreógrafo. O que isso significa é que qualquer abordagem às suas obras, por mais documental, dedicada e ampla que seja, inevitável e invariavelmente passa por múltiplas camadas de processos de apropriação e reconstrução.

Não se trata de um defeito da dança, mas de uma característica sua que não pode ser evitada, que não deveria ser negada, e cuja consideração faz parte dos trabalhos de qualquer companhia que se preze a esse tipo de trabalho de reconstrução / reposição de repertório / reencenação / remontagem. Trata-se de uma responsabilidade artístico-estético-histórica para com o seu público, que não tem, e não precisa ter, a bagagem histórica e de pesquisa que as companhias e seus diretores, esses sim, precisam ter e demonstrar.

Quando a São Paulo Companhia de Dança nos apresenta um Grand Pas de Deux de “O Quebra-Nozes”, e um ato de “O Lago dos Cisnes”, bem além de duas obras, o que é apresentado é mais de um século de trabalho de diversos indivíduos. E esse é o insistente problema no tratamento que a SPCD dá em geral às suas obras clássicas, e que as deixa, via de regra, aquém do que a companhia faz como um todo, e do que declara como seu projeto.

Não se trata em nenhuma instância de falta de dinheiro, nem de falta de talento, nem de despreparo de elenco, mas de um conjunto de erros de direção e de realização. Nesse caso em específico, os problemas começam já na organização do espaço. A Sala São Paulo é linda, sua acústica é de fazer inveja, mas, para se ver dança, é uma negação. Com a orquestra elevada para o coro, e o elenco dançando no palco, temos uma visão privilegiada do maestro de costas regendo a OSESP, e perdemos, quase que constantemente, toda a metade de baixo dos corpos dos bailarinos. Bom para a orquestra (ainda que um tanto quanto inútil — eles lá estão para serem ouvidos, não vistos), mas completamente inadequado para a companhia de dança.

Com sorte, insistência e muitos movimentos de cabeça, poderemos ver alguns relances da execução — muitas vezes admirável — do elenco da companhia. Mas é contra-produtivo assistir a esse tipo de obra nesse espaço: perdemos as pernas, perdemos os pés, perdemos a agilidade e a leveza, perdemos as sapatilhas de ponta, perdemos o trabalho com a técnica. Do outro lado da moeda, uma questão de possibilidades: em tempos tão complicados como os que vimos para a dança este ano, as parcerias foram o que permitiram a tantas companhias continuar se apresentando e mostrando seus trabalhos. Nesse sentido, essa talvez seja a possibilidade encontrada. Longe do ideal, mas o que poderia ser feito. Compreensível.

Se as obras fossem retiradas da Sala São Paulo e colocadas num palco melhor, o que então veríamos? É aqui que se destacam os outros problemas do programa apresentado, com relação à mencionada bagagem histórica. Queremos ver “O Quebra-Nozes” e “O Lago dos Cisnes”, mas as desconfianças começam na mesma hora em que as sobrancelhas se levantam, no momento da leitura da ficha técnica do programa.

Com coreografias respectivamente creditadas a Yoshi Suzuki e Mario Galizzi, ditas “a partir do original de Petipa e Ivanov”, entramos no domínio do amadorismo. As coreografias originais, de 1892 e 1895 foram registradas, mais de uma década depois, em Notação Stepanov, por Nikolas Sergeyev, diretor de palco do Mariinsky no início do século XX. Depois da revolução Bolchevique, Sergeyev foi para o ocidente, levando seus registros, que serviram como base para a remontagem do repertório de Petipa junto aos Ballets Russes e ao Vic-Wells, onde a própria Ninette de Valois observava que as anotações de Sergeyev eram pessoais e incompletas, e que o remontador era frustrantemente pouco musical, rígido, dado a arroubos de personalidade, e que tinha tendências a cortar passagens inteiras da obra, que ela, junto de Constant Lambert e com a ajuda de Lydia Lopokova, secretamente tentavam restaurar, criando um resultado que tem uma referência ao trabalho dos coreógrafos das primeiras versões, mas não tinha nenhuma dedicação a recolocar esse trabalho no palco, e sim de aproveitar de algo pronto na busca de um novo sucesso, para um novo tempo, e que deveria receber uma nova assinatura.

Junte-se a isso que o próprio Petipa chegou a renegar algumas das anotações de Sergeyev, e vemos, em suma, que a ideia do “original de Petipa” é um mito. Não se trata de uma invenção da SPCD — é uma história perpetrada por muitas companhias, sim, porém, naquelas maiores, o que costumamos ver como tendência há algum tempo considerável é um maior detalhamento de créditos. Assim, explicitam-se nos programas quem são os remontadores, quais experiências eles tiveram com as obras, que acesso eles tiveram a que companhias, onde puderam dançar esse repertório e aprendê-lo a partir dos corpos de que outros bailarinos, que notações eles usaram, por quem essas foram feitas, onde, quando, como, em que circunstâncias, e assim por diante. Com essa referenciação, cria-se (mais que uma genealogia) um mapeamento genético é hereditário da remontagem. Isso, até hoje, não apareceu nas obras da SPCD.

O resultado é o que vemos em cena: não falta talento, mas falta conteúdo nas obras. Sem nenhum aparente trabalho historiográfico, e de contato corporal real, qual o motivo e o propósito das assinaturas das versões? Se não há nada de novo, tampouco de fato uma pesquisa que se justifique na aproximação de alguma dada versão (e não do imaginário “original de Petipa”, ao qual a ninguém tem acesso), de que nos servem os nomes creditados no programa?

Há público para o clássico, não há dúvida. Mas há uma responsabilidade sendo negada de tratar o público com a deferência e o reconhecimento necessários. Do contrário, circulamos o terreno amador daquilo que as academias de dança fazem com essas mesmas obras, que perdem o valor e se transformam em exercícios de cópia e reprodução de vídeos. Alguns deles podem ter boas execuções. Aqui, vemos boas primeiras tentativas, de realizações que podem amadurecer. Mas não são elas o problema, e sim a falta de cuidado de trabalho (e apresentação desse trabalho) histórico, que sustentem aquilo a que assistimos enquanto uma realização profissional, de uma companhia grande, e que beira os dez anos, ainda sem se resolver com o clássico.

 

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