Críticas

Um Pedaço de Giselle

Feita pra impactar, a Giselle da São Paulo Companhia de Dança vem aos pedaços. A grandiosidade certamente combina com o balé, já o despedaçamento dá um tanto mais de trabalho, que o elenco tenta contornar, com algum sucesso.

O cenário de Vera Hamburger para a versão de Giselle da São Paulo Companhia de Dança dá o tom de grandiosidade que, já sabemos, funciona bem nas produções clássicas da SPCD — tanto em projeto como em recepção do seu público. As pernas do palco (as saídas laterais) fazem uma composição bonita e impactante a partir de gravuras clássicas de florestas brasileiras, que ao mesmo tempo nos coloca nesse tempo distante (das gravuras e do enredo desse balé), e nesse espaço próximo (não é uma floresta alemã, mas a nossa flora que circunda essa história).

São poucos os balés com percursos históricos tão densos quanto Giselle. Sucesso absoluto da dança romântica, a coreografia teve uma estreia parisiense em 1841, remontagem inglesa e montagem russa em 1842, trocas de elenco, versão russa do próprio Perrot em 1850, e quatro revivals de Petipa na Rússia entre 1884 e 1903. Com grande familiaridade e proximidade dos envolvidos nas montagens, esse é um daqueles balés que certamente se transformou muito da versão original até os dias de hoje, mas que acreditamos que guarda várias raízes e sua origem. O diálogo com essas raízes é aqui o desafio de Lars Van Cauwenbergh, professor de balé da SPCD, que assina a remontagem da obra. 

Giselle acumula códigos e convenções que se cristalizam às vezes como tradições particulares. Cada tradição remonta a uma das muitas versões ditas originais, e a participação nessas tradições frequentemente é determinada pela proximidade de cada um com os ajustes que conheceu ao longo de sua carreira. Sabendo que não estamos lidando com uma pintura de 1800, restaurada com tecnologia de luz infravermelha, o foco da discussão, como é frequentemente ao assistir balé clássico, fica no como essa história, essa proposta, e essa movimentação ressoam para o público hoje.

Com a nossa mentalidade tão transformada e pouco romântica, Giselle — e o balé quase como um todo —, são lidos como contos de fadas. Histórias normalmente morais, sobre as dificuldades da vida, e com tendência ao final feliz. Mas Giselle é um balé de enredo complicado. Ele tem um primeiro ato de mentira, enganação, sedução, traição, humilhação e desespero, antes de passar para um segundo ato sobre arrependimento, vergonha, vingança, e amor. Essa divisão, que segue uma lógica importante pro balé romântico, cria uma obra extremamente difícil de ser dançada: ela não é tão longa, mas suas variações são muito intensas, criando desafios para os bailarinos, que precisam nos convencer da história, das relações das personagens, e de suas motivações e sentimentos.

Nessa versão, ainda que os papéis de destaque (Giselle, Albrecht e Myrtha) se esforcem e transmitam toda a intensidade do trecho que apresentam, eles sofrem um tanto com o recorte proposto: a SPCD não nos apresenta Giselle integral, mas seu segundo ato. É um ato lindo, e um dos melhores atos da história do balé, mas nele sozinho se sente a falta da lógica narrativa dessa história. Uma adaptação mais curta de Giselle, com cortes e ajustes de enredo seria menos fiel a uma noção de clássico, porém mais fácil de entender para a plateia.

A companhia também não ajudou tanto o público com o programa de sala, que apresenta a história, mas focada naquilo que é importante para o todo do segundo ato, deixando uma confusão narrativa pra quem não for familiarizado com a história: o programa nos conta do romance de Giselle e Albrecht, mas o segundo ato abre com Hylarion e Myrtha. Ao longo da cena, Myrtha se explica, e é possível entender sua função. Mas Hylarion, não. É uma pena, porque ele é um personagem interessante, mas que, numa versão só segundo ato não teve chance de fazer sentido.

Eu tenho um tanto de receio e protecionismo com o balé clássico, é fato. São Paulo não tem tradição profissional com essa dança, e enfrenta um conjunto problemático de preconceitos. Ver esse tipo de produção feito no nível da São Paulo Companhia de Dança colabora muito com a melhoria dessa situação. Mas também é preciso ter um cuidado pra não entrarmos numa leitura de balé como uma estrutura narrativa incompreensível. Especialmente num exemplo como Giselle, em que a estrutura é de fato compreensível, mas talvez bem menos quando recortado pela metade. Tudo bem recortar, mas também tudo bem adaptar, transformar, pra garantir que ele faça sentido.

Esse tipo de lógica valorizaria o trabalho tão grande investido nessa produção. Esse Giselle transparece o seu esforço, e o desejo de seu acontecimento. Originalmente programado pra temporada de junho da SPCD, o balé teve suas apresentações canceladas em meio às medidas preventivas com relação à pandemia, porque membros do elenco testaram positivo para COVID. Três meses depois, o elenco finalmente consegue subir ao palco do Sérgio Cardoso para só quatro apresentações com plateia reduzida. Thamiris Prata segura a personagem com um tanto de dor que machuca até o público, o que é um bom sentimento pra Giselle, que precisa pesar na consciência. Já o Albrecht de Geivison Moreira sofre mais com a falta de oposição da história: sem o primeiro ato, o público entende Albrecht como um viúvo injustiçado, não como um homem culpado e arrependido.

A execução técnica é bonita. A organização da coreografia, sobretudo para os conjuntos, funciona e cria atmosferas cênicas em bom diálogo com a grandiosidade do cenário. E essa curta temporada deixa um gosto por mais. Mais dessa história, uma montagem talvez com outra proposta de recorte, e uma temporada ainda maior, pra termos mais tempo de ver esse elenco amadurecer nas personagens no palco, e pra poder ver o trabalho de todas as variações de elenco. Quando a SPCD dançou O Lago dos Cisnes, eu fiz questão de criticar todas as variações de elenco. Dessa vez não foi possível, mas só as imagens, deslumbrantes, divulgadas durante a temporada, já deixam um desejo imenso de ver as outras variações, de explorar essas outras leituras, esses outros pedaços do todo criado pela SPCD.

O “todo” é uma coisa importante aqui. Uma Giselle mais curta ainda pode ser uma Giselle inteira, não aos pedaços. A lógica de montar um ato, ou montar um pas de deux é tradicional no balé, mas São Paulo não é uma cidade tradicional no balé, e talvez pensar em outros ajustes possa ser uma boa solução entre as opções de montar apenas o repertório clássico inteiro, ocupando a noite toda, ou montar um trecho.

A certeza que fica, e que vem sendo construída ao longo do trabalho da SPCD com balé é que existe um público pra isso aqui. Ávido, eu diria, olhando como as temporadas que têm repertório clássico lotam. E a SPCD tem experimentado e criado soluções pra nos trazer essas produções. Inventivas, bem desenvolvidas, espetaculares e espetaculosas, e sempre amadurecendo.

Giselle – Ato II 

Remontagem: Lars Van Cauwenbergh, a partir da obra de 1841 de Jules Perrot (1810-1892) e Jean Coralli (1779-1854)

Música: Adolphe Adam (1803-1856)

Iluminação: Wagner Freire

Figurino: Marilda Fontes

Cenografia: Vera Hamburger

Assistência de Cenografia: Fernando Passetti

Execução de cenografia (boca de cena e túmulo): Jorge e Denis Produções Cenográficas

Tratamento de Imagens: MR Estúdio Digital

Iconografia: Telão: foto de Cássio Vasconcellos/Bridgeman Images; Pernas: composição com gravuras de Jean Baptiste Debret cedidas pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin; de Charles Othon Frederic Jean-Baptiste de Clarac e de Friedrich Philipp von Martius (a partir de Thomas Ender e de Benjamin Mary) – Coleção Martha e Erico Stickel – cedidas pelo Acervo Instituto Moreira Salles

Visagismo: Augusto Sargo

Professora de Interpretação: Vivien Buckup

Elenco: GISELLE – Carolina Pegurelli ou Thamiris Prata; ALBRECHT – Vinícius Vieira ou Geivison Moreira; HILARION – Mateus Rocha ou Hiago Castro ou Diego de Paula; MYRTHA – Beatriz Paulino ou Luciana Davi; MOYNE – Luiza Yuk; ZULME -Ana Roberta Teixeira; WILLIS – Ana Paulino; Artemis Bastos ou Nayla Ramos; Cecília Valadares;  Dandara Caetano;  Giovanna Fioravanti;  Letícia Forattini;  Luiza Almeida;  Mayara Veronezi;  Pâmella Rocha;  Paula Rosa; Poliana Souza;  Sofia Tarragó